domingo, 7 de dezembro de 2014

Dedos

Roubaram meus documentos, não mais tinha identidade
clonaram meu cartão, fiquei sem limite
era cabo de guerra com meus cabelos, perdi a cabeça
meus dentes ganharam intervalos, fiquei sisudo
minha bengala era um bambu, mas rima boa não havia
almoçava gargalos e canudos
minhas mãos, intocáveis de sujeira, eram então analfabetas
camas retas eram um luxo raro; se macias, dignas de um selfie
mas em meus sonhos você existia
e eu te emprestava meus dedos carcomidos
pra gente fazer poesia

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

3.0

Aos quase 30, descobri que ser cego é ser eu mesmo, como sempre me fizeram e me fiz ser. No terceiro decanato aprendi que a vida é um prato,
do qual só degusta quem pergunta ou se faz ouvir. Entendi que não adianta reclamar a presença do outro sem também se fazer presente. Nem
todos os momentos são felizes, mas com alguma vaidade serão esses que perdurarão com mais nitidez e intensidade na linha do tempo. Existem
os que te admiram, os que te querem bem, os que te invejam, os que não batem com atua energia ou nada a ela acrescentam. Nem todo olho
vermelho é resolvido com colírio. Uma idéia anotada vale mais que meio café. Histórias tristes podem ter finais felizes e vice-versa. Não
adianta querer abrir os olhos de quem dorme, fechar os de quem sempre viu. Algumas cascas podem ou devem ser quebradas. Imprevistos me
agradam, desde que sejam supostamente melhores que o script original. Acho que gosto de São Paulo, também de São João, como na música do
Legião. Não preciso de um milhão de amigos, só quero os que também me querem por perto. Quero uma casa no campo, com vista pra Paulista. Sou
um curitibano estranho: dou bom dia até pro elevador vazio, faço amizades de um dia. O atraso é quase inevitável, uma hora os carros param
ou alguém me chama. Se preocupar por antecipação é criar imaginárias chances de dar merda. Nunca haverá tempo suficiente pra se ler todos os
livros e aprender todos os caminhos que ouço falar. Nunca é tarde pra incorporar novas rotas e idéias. Todo carnaval tem seu fim. Todo fim é
um recomeço, daí ser tão parecido com o anterior. Todo aniversário é vida, toda vida é a expressão de quem se permite viver. Agradeço
àqueles que da minha fazem parte - aos de Curitiba, Sampa ou Marte

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Chegada na quebrada da noite

O ônibus vem vazio, macio. Ainda que eu insista não carecer, o cobrador
e sua mão pesada me conduzem até a calçada do ponto: um corredor
estreito para os humanos, um vaivém paralelo de barulhentos
biarticulados quase que a abraçá-lo. Nenhuma alma respirante, pra me
puxar feito barbante, em caso de algum desatino mais agravante. O ouvido
cega, os pés dão paços milimétricos para frente à procura de algum poste
ou piso tátil, enquanto um roncar mais grosso quase deixa minha bengala
não mais retrátil. Respiro fundo; o ar vem impregnado de cigarro
paraguaio e algum destilado químico. O nóia mais nóia praticamente late
que sabe de onde venho, me mostra o outro lado da rua num ziguezaguear
ligeirin. Raspo a mão numa lixeira, me despeço já quase no fim. Demora
muito não, já tô no meu portão. E ele pra onde vai será, assim sem
nenhuma chave na mão? Boa noite quebrada, ou já bom dia; tamo junto
nessa travecia

domingo, 1 de junho de 2014

Foi um Frio que Passou em Minha Vida

Era um frio que fazia vibrar entranhas e estranhas, uma súbita vontade de chegar
em casa e abraçar todos os cobertores possíveis. Assim mentalizei, mas a
impressão era de que nada naquele momento faria passar tamanha sensação de
desamparo. Lembrei dos imigrantes aitianos desembarcando quase sem roupas na
Barra Funda, senti arrepios por eles. Me imaginei tomando sopa debaixo de alguma
marquise, as pontas dos dedos ficaram cegas. Em fim, mudou a música, a cadência
do pensamento. De repente já era fim de noite. O vento continuava soprando,
agora de todas as direções, e eu sem saber pra onde olhar. Liberdade ou tontura.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Coração a 30 graus

Aos quase 30, pareço querer concluir que o coração é um tic e um toc, que assume
diferentes compassos conforme o jogo dos dados varridos. Diz o pulsante que
existem diversas formas de se gostar - do toque, do olhar, do luar. Aí vem a
paixão e bota pra sambar todos esses compartimentos, às vezes até encaixando
pelo tempo certo. Nessas diversas formas com que o coração se permite
fragmentar, parece que alguns compartimentos são privativos - ou admitem um
único cohabitante. Nada se conclui mas, se os compartimentos estiverem bem
acomodados, o texto flui. E é pra lá que eu fui. (filosofias de uma noite
turquesa de verão, com ventilador e muito mate gelado - era o que a geladeira
tinha a oferecer

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Explorações

Queria se jogar, mas não sabia a altura
Queria se esfregar, mas não sabia a testura
Queria cheirar, mas não sabia da compositura
Queria as orelhas encostar, mas não sabia a temperatura
Então lentamente pôs-se a dedilhar, tanto quadro como moldura
e assim o desenho ganhou contornos, alma e envergadura; esqueceu-se de qualquer amargura

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Os Outros

Saía de um compromisso, no atraso já quase cotidiano, e seguia para outro - esse
sim indispensável, por garantir o sustento no final do mês. Dormira um sono
agitado na noite anterior, mas consegui chegar até a academia pensando no
dinheiro jogado fora, na necessidade de algum apego ao corpo pra de, alguma
forma, minimizar o ponto perdido na caça pelo fato de não enxergar - ter algum
assunto a prender a atenção de quem seguro o braço também ajudava. Mas naquele
intervalo de tempo poucos braços apareceram, as únicas palavras que eu às vezes
ouvia era um "pra direita, pra esquerda". Me enrosquei em todas as obras
possíveis, a cada passo imaginava cones e cavaletes, britadeiras e areia.
Buracos se sucediam, num deles quase o pé ficou e a perna continuou. Desvia dali
e daqui, por vezes parecia que os carros, sempre tão velozes, estavam a poucos
centímetros daquele corpo que andava de forma mecânica: a perna direita, o braço
esquerdo batendo a bengala, a perna esquerda, o braço direito - e assim
sucessivamente até parar num poste ou amontoado de lixo. Tropeço num pano ou
cobertor encardido, a partir de então, além das britadeiras imagino todos os
moradores de rua me seguindo. Um desnível me faz desistir também da pressa, era
preciso fingir alguma calma. Latas móveis e barulhentas brotavam de todos os
lados na próxima esquina, aproveitei pra tentar ver as horas no celular, mas o
aparelho não respondia a nenhum comando. Achei perigoso ficar ali, acariciando o
visor em busca de alguma palavra - agora, além das britadeiras e mendigos,
trombadinhas me olhavam com cara de próxima vítima. O barulho parou, tomei
impulso e só percebi que traçara uma diagonal quando demorei a encontrar a
sarjeta. Nela tive vontade de ficar, quando meus pés sentiram a água parada e
fétida no exato momento em que meu pulso roçou uma árvore e começou a arder.
Ainda meio atordoado, procurei encontrar o sentido da rua de maior movimento e
segui em uma caminhada quase uniforme até o próximo orelhão em que minha cabeça
se acomodou. Tiro do gancho, escuto o "tuuuu" comprido e rio, talvez de
desespero. Penso em ligar pra ela, mas já não tinha mais clima ou motivo. O
gosto da fumaça me enoja um pouco, mas puxo o ar e finjo tragar um longo
cigarro. Sigo a caminhada, na próxima esquina em fim um braço falante e emotivo.
Me contava da vida difícil no sertão, do irmão alcoólatra, da gravidez
indesejada, da tia com câncer. Uns 13 minutos depois, a mão pequena apertou a
minha e aí cada qual seguiu seu caminho. Faltava só mais uma quadra, ali eu já
sabia o sentido das ruas e o percurso de olhos fechados - algo me fez recuperar
a segurança. Cheguei ao meu destino, o povo simpático da recepção me fez tentar
retribuir o sorriso. O ar-condicionado já amenizava meu suor, aos poucos os
demais sentidos foram voltando. Não sentia fome, parecia não haver nenhuma
notícia triste de alguém da família ou próximo. Nada como a desgraça alheia pra
nos reconfortar e fazer sentir vergonha dos nossos reclames.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Uma pequena enchurrada de palavras

Lá fora o mundo vertia em pingos, aqui dentro nada. De repente uma voz - quase
um latido - interrompe o chiar da água na pista. Bradava talvez contra o
capitalismo, os pecados capitais, os gastos com a copa, a proibição dos
rolezinhos, o desalojamento das famílias da Nova Palestina, no extremo da zona
sul paulistana. Os reclames prosseguiam, mas eram tão exaltados quanto
ininteligíveis. Um clarão, um barulho ensurdecedor, passos apressados e
novamente só o chiado da água. A paz voltava a reinar, me vi submerso novamente
no expediente. Às 19, expremido entre um cotovelo e outro, senti cheiro de
cachorro molhado e embarquei rumo à Consolação: antes uma sexta chuvosa a uma
segunda azul.