sábado, 21 de setembro de 2013

Caçando no escuro

Finjo alguma pressa, mas ela parece não se importar. Me guia até o 5º obstáculo,
dou alguns passos e subitamente penso que poderia voltar e molhar o bico. Subo o
degrau como se conhecesse o recinto, olho fixamente para o balcão e balanço meu
cabo guia. O garçom me avisa das notas do troco, pego a latinha e me ponho na
calçada. A mesa da esquerda me convida pra sentar. Por alguns instantes
mentalizo a mesa dela, mas segundos depois, já sentado, pude reparar que eram um
grupo grande, e que ela estava lá na outra ponta. Talvez na ida ao banheiro a
gente se esbarrasse? Será que também me olhava? A bexiga demorou a apertar, a
voz sumiu do meu horizonte. Por noites e até com sol passei naquela esquina, mas
nunca mais a encontrei na multidão.

domingo, 15 de setembro de 2013

Um apagão de 4 noites e 2 dias

Os semáforos ensimesmados, a repetir uma única cor apagada.
Alguns corpos foram necessários pra entender que o melhor era deixar o carro em
casa - a pressa também se apagou.
As geladeiras apodreciam, velas e isqueiros vasculhavam os escombros. O mendigo
já tava acostumado com a comida passada, mas à noite era sem alarmes. Tomava-se
cerveja quente nos bares, brindava-se a suspensão do expediente por falta de
computadores com nobreak. Nos restaurantes, muitos apressados comiam
literalmente cru. Cegos corriam pelas avenidas do centro, desertas de latas
móveis e tomadas de gente, vendendo pilhas. Aquele cubinho dotado de energia
começou a valer muitos dinheiros, ainda mais quando o cartão, na falta da
maquineta, passou a ser só um plástico numerado. Filas se formavam nos orelhões,
pra dizer que tava tudo bem e que, apesar dos pesares, tava tudo bom. À noite
alguns bancos que ficaram sem fardados de lanterna foram saqueados, mas os novos
ricos logo se iluminavam de mais e eram capturados em pleno breu. Nas primeiras
horas, vizinhos se encontravam constrangidos para o banho com senha, já que nos
andares mais altos a água só chegava por bombeamento (e olha que subir todas
aquelas escadas já era motivo pra uma boa chuveirada). Não demorou pra síndica
escrever 200 bilhetes a mão e convocar uma reunião de emergência, a fim de
estipular os horários de banho e a repartição de alimentos em bom estado -
muitos tanto se animaram com a idéia que até começaram suas ortinhas.
Numa dessas infindáveis noites, na fila da ducha, um vivente simpatizou com
outro e se solidarizou com a subida até o 20º caixote; acabaram dormindo de
conchinha no quinto. E de repente vários rádios e televisores gritavam ao mesmo
tempo, celulares voltavam a vibrar e emitir seus grunhidos. No radinho de pilha,
a mesma informação da telinha: já tinha metrô circulando. A luz voltou, já era
amanhã.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Ensaio sobre a cegueira alheia

Escovando os dentes e andando pela casa, me puz a divagar sobre conhecida música
do Capital Inicial que então tocava no rádio: o que você faz quando ninguém te
vê fazendo ou o que você queria fazer se ninguém pudesse te ver? A pergunta já
até foi postada no "Yahoo Respostas", onde se mensionou desde chupar o dedo a
ver filmes eróticos. Penso, contudo, que além de coisas que temos vergonha de
fazer na frente de nossos semelhantes, podemos aproveitar a situação para algum
benefício próprio (aqui uso a 1ª do plural para passar a noção de coletividade,
e não necessariamente o que eu faria ou deixaria de fazer). Tome-se como exemplo
certa passagem do livro "Ensaio Sobre a Cegueira", de José Saramago: isolados
num alojamento só para pessoas que ficaram cegas, alguns mentem não terem
recebido comida, a fim de repetirem a escassa dose. Histórias parecidas
presenciei em encontros em que os "companheiros das vistas prejudicadas" eram
maioria (os chamados "encontros da cegolândia"): os poucos olhos atentos me
relatavam coisas como alguém que ficara com duas pessoas, sem que o outro
parceiro soubesse. É evidente que tais, digamos assim, desvios de conduta não
sejam exclusivos do meio cegal. No semáforo fechado, o motorista aproveita para
tirar aquela meleca do nariz - dentro daquela cápsula de lata e vidro, o cidadão
se sente invisível. Quem nunca pensou, ainda que depois corasse de vergonha pelo
pensamento ou risse à toa, em furtar um doce de alguma prateleira, ainda que
houvesse muito dinheiro nos bolsos e nenhuma fila no caixa? É claro que o mero
ato de mentalizar não é crime, mas o que nos faz pensar duas vezes? Há uma
diferença abissal entre cutucar o nariz e o furto, mas ambas são condutas que
geralmente só se concretizam quando se pressupõe não existir olhos atentos. Pra
fechar, vale citar Oscar Wilde: "Chamamos de Ética o conjunto de coisas que as
pessoas fazem quando todos estão olhando. O conjunto de coisas que as pessoas
fazem quando ninguém está olhando chamamos de Caráter." E você, o que faria se
ninguém pudesse te ver?