quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Meus personagens

Meus personagens sairão de cena por alguns dias nessa coluna, à procura da
batida perfeita (seja de coco, maracujá ou até abacate), água fresca e arrego
para os dedos, mas os ouvidos continuarão abridos, em busca de roteiros menos
repetitivos. Meus personagens gostam de compartilhar, mas esse verbo requer um
complemento: saber o que disperta a curiosidade e entretêm os avatares alheios.
Minhas criaturas rabiscadas se importam mais com pessoas e momentos, mas certas
vezes gostam de viajar por outras paisagens. Ainda sentem-se um bocado
envergonhadas ao penetrarem em terrenos desconhecidos, mas adoravam desfilar
fingindo alguma pressa pela já extinta Rua 24 Horas, auxiliando na geografia e
na diversão dos turistas que procuravam esquentar a fria noite curitibana.
Depois tomaram gosto pelas calçadas planas da Avenida Paulista, os altos e
baixos não geográficos da Augusta, os orelhões e postes da 14 Bis. Em um bronze
de escritório buscaram o sol de Copacabana, ainda que muitas vezes de tênis e
camiseta preta, se acharam nas ruas tortas da Lapa e pensaram em matar a sede na
Lagoa. Meus personagens atravessam as ruas correndo, mas frequentemente evitam
essa curta maratona fazendo amizade com o flanelinha, o olheiro, o segurança da
boate. Meus personagens têm algumas manias e várias idades: por vezes planejam e
filosofam como velhos, se divertem como crianças e criam problemas de uma
adolecência tardia. Meus personagens não querem uma cura, uma mudança radical na
maneira de ver o mundo: apenas querem continuar fazendo parte de maneira intensa
e mudar o que estiver no alcance.
Meus personagens não se satisfazem com os pingos nos is, porque foram
alfabetizados em braille e cada letra, número ou símbolo é formado de ao menos
um pingo. Meus personagens gostam de São Paulo e de São João, de calçadas livres
e de multidão. Meus criados virtuais giram em torno de meus devaneios: falam de
mim, dos tipos que observo, do que sou, pretendo ser ou admiro nos personagens
do mundo lá fora. E eles se sentem mais leves quando rabiscados, lembrados e até
inventados. A cortina que se fecha é só outra página de calendário chegando,
para ser novamente rabiscada. Que 2012 guarde muitos causos, a serem
transformados em postagens. Até lá a todos vocês, a todos nós!

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A insustentável leveza dos raios

Dizem que o pior cego é aquele que não quer ver. Quem escreve essas
linhas, com a tela desligada, acredita na existência de dois outros
tipos de "cegos" que merecem certa desconfiança: a do que imagina também
não ser visto,
 a ser abordado em um próximo rabiscar, provavelmente só ano que vem, e
o que se apega a situações que jura ter visto. Trata-se daquele que vê
coisas e espera a solução para problemas que os outros desconhecem.
Encasqueta com a falta de resposta a uma mensagem que a operadora de
celular não enviou, ou fez tantos rodeios que era praticamente
impossível entender se era só algum devaneio ou demandava algum tipo de
manifestação. É algo como esperar um convite para um cineminha
escrevendo que o tempo está chuvoso e que gosta de tal ator. Esse
indivíduo que tem ilusões de ótica Exige confiança, mas se mostra
inseguro. Não quer que a simpática atendente da lanchonete se preocupe
com os degraus que o olham com cara de desafio até a calçada mais
próxima. Comenta que todos os dias sobe até o 7º andar em seu trabalho,
mas fica sem esboçar alguma reação racional quando derruba o suco de
morango e fica mais vermelho que o líquido a melar calça, cadeira e
chão. Fala que não gosta da chuva, mas sente alguma emoção quando ouve o
estrondo que vem dos céus, precedido de um clarão e alguém gritando,
ainda que para dentro: "nossa, esse vai ser forte!". Trovões são como
alguns propósitos: trazem uma luz, fazem o maior estardalhaço, mas
poucas vezes mudam o curso natural das coisas. O fato é que, de trovão
em trovão, as núvens tornam-se menos carregadas e, quando já fartas de
perderem a água que as sustenta, deixam o sol, ou a lua, reassumirem a
direção. Quando se acredita andar nas núvens, ocilações pelo caminho são
certeiras. Áreas de instabilidade não são comuns só nas viagens aéreas,
mas também quando se acredita ter os dois pés no chão. Sem elas a
calmaria seria rotina, passaria despercebida. Um brinde aos sucos
derramados, às meias molhadas, às expectativas construídas em bases
infundadas, às lamentações sem propósito e às idéias passageiras que nos
fazem sacudir a poeira e seguir em frente, deixando no ar a impressão de
que alguma coisa aconteceu.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Cada esquina tem seu Judas

Tudo começou no último fim de semana, com bons amigos num bar da Praça
Roosevelt. Lembrávamos de frases para dar aquele desfecho especial quando se
perde o fio da meada, invertendo-se os papéis e deixando o ouvinte com aquela
cara de quem dormiu no ponto. Coisas do tipo "é cada um com o seu" ou "cada
esquina tem seu Judas"! Essa última me fez lembrar que, na verdade, uma esquina
de
fato são quatro, e o objetivo central é explicar o desdobramento prático que
isso tem. Encruzilhadas são pontos de encontros, desencontros, despachos,
conversões perigosas de carros e pedestres. Alguma coisa acontecia em meu
coração, quase todas as manhãs, quando eu cruzava a Ipiranga com São João,
esquina imortalizada pelo velho Caetano. Naquelas calçadas largas e barulhentas,
fácil não era encontrar o ponto certo de cruzar a Ipiranga, pois eu já vinha
pelo lado certo da São João. Braços dos mais diversos credos já me auxiliaram
ali, mas os menos esclarecidos não sabiam qual era qual e, quando eu ia me dar
conta, o trabalho de volta seria dobrado: atravessar ambas. Se o relógio não me
era favorável, como geralmente acontecia, ao invés de aguardar ajuda eu chegava
o mais próximo possível de algum vivente e nos primeiros paços da multidão eu
apenas seguia o fluxo. E aí dava aquele medo de fazer a diagonal judástica e
atravessar as duas vias de uma tacada só, ou então o farol abria e e meu peito
apertava cada vez que uma buzina lá de longe dava o sinal da graça, ou da
extrema unção. Geralmente não era nada além de motoqueiros com problemas de
ereção testando os escapamentos furados antes do momento certo. Se o caminho era
o de volta, valia uma limonada e um bauru no Ponto Chique como recompensa, ou
então algumas poucas vezes um chopinho no Bar Brahma, cujos seguranças já me
conheciam e me ajudavam a atravessar o fatídico entroncamento, apesar de sempre
perguntarem pelo meu cão guia. Ora, todos sabem que não tenho o bichano, mas
parece que todos os cumpanheiros da vista prejudicada são irmãos gêmeos. Fosse
eu um pouco mais Judas, pediria bons drinques e falaria para pendurar na conta
do dono do cachorro. E é nas esquinas que muita coisa acontece: na Vicente
Machado com Visconde do Rio Branco, na Augusta com Antônio Carlos ou na
Riachuelo com Gomes Freire. Os amigos que comentei acima conheci na Aurora com
Andradas, aqui no clássico Bar Leo, centrão de Sampa. Aliás, as melhores geladas
geralmente são tomadas nas esquinas. Naquele dia um deles perguntou se eu ia
atravessar, mas quando eu disse que só aguardava o garçom pra buscar aquele
chopinho, a afinidade começou talvez antes da primeira tulipa. Naquela época eu
ainda morava em Curitiba, onde depois aconteceu situação semelhante, mas sempre
que eu voltava aqui pra Sp os encontros na esquina eram cheios de histórias,
risadas e boas recordações. Em cada encruzilhada tem um Judas: o batedor de
carteira, o cafetão que explora os corpos alheios, o vapor à espera do momento
certo, o encrenqueiro à espera dos truta, aquele que disse ter visto Deus e
promete curar o incurável, o velhote que observa para depois contar para o
bairro todo. Mas em cada esquina tem também o seu Jesus, na forma de uma energia
boa: o pedestre solidário, a senhorinha que anda assoviando uma marchinha do
carnaval de outro século, a estudante panfletista, o contador de histórias, o
segurança atento, o garçom camarada, o notívago em busca de uma prosa etílica. E
assim, nas esquinas, fiz parte de meus poucos amigos e muitos conhecidos,
companheiros de copo ou de mudanças de verde para vermelho no farol.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Teve bola, teve bolo

As comemorações do meu aniversário começaram na sexta. Fui com o pessoal
do trabalho num rodízio de petiscos, foi muito bom rever algumas
figuras. Noite curta, mas intensa. Felizmente o sono veio rápido, porque
o dia seguinte foi longo. Formatura do pré na escola da Nicole, foi aí
que comecei a perceber o quanto o tempo tem acelerado, envelhecemos e
crescemos. Ando cada vez mais babão, é verdade, e lembrar do ano
passado, quando ela falava ao telefone "tô te ligando porque a mamãe
falou pra eu ligar que era seu aniversário" até me fez rir. Ela já pensa
na sua próxima apagada de velas, que vai ser só (e já) em maio, talvez
seja logo depois do papai Noel. À noite teve o já tradicional rolê pela
Augusta, que sempre começa no carrinho das redondas ("vai Corínthians!
uma é 3, duas é 5, gelada gelada)" e termina no Bar do Netão, um ouvido
na pista e outro no balcão, no limite entre fim de noite e começo de
manhã. Dessa vez a cama me chamou antes do clarear, quis me guardar para
quando o Coringão chegasse, e chegou. Almoço farto e tardio com uma das
primeiras pessoas que tão bem me acolheu aqui em Sampa e depois corri
pra casa de grandes amigos assistir ao grande jogo, com uma vuvuzela
pendurada no pescoço e outra que me acompanha de berço, a garganta. Eu,
que pouco sabia sobre o Doutor Sócrates, a invasão do Maraca e outras
páginas da guerreira trajetória alvi-negra, estava mais inquieto que o
meu normal. Era a primeira vez que eu gritaria o "é campeão"! Tinha até
um palmeirense querendo gorar a festa, daqueles que vai pra praia e
volta até com a lingua bronzeada, mas é tão gente boa que não tem como
achar ruim. Minutos finais, a rede não mexeu uma única vez. Confusão
generalizada dentro de campo, nada de apito. Mas era só esperar mais um
pouco, a barulhada era certeira. Pra completar a alegria teve bolo
surpresa, que dia! Nada melhor que estar na companhia de pessoas com
quem temos tanta afinidade, presentes que os últimos 3 anos me
trouxeram. As vuvuzelas incomodaram os tímpanos alheios Augusta a cima e
Paulista abaixo, ah como eu queria ter um carro só pra sair buzinando!
Com a camiseta preta e branca é fácil fazer 10km por litro: "aê
Corínthians,é nóis! vai atravessar?" Quando aqui cheguei muitos dos
gente boa que conheci engrossavam a torcida, rapidamente fazendo brotar
uma simpatia pelo time, que se transformou em paixão da primeira vez que
fui ao Pacaembu. Foram só duas vezes, é verdade, mas são difíceis de
esquecer. O bando de loucos em uma quase virada de ano foi um
descarrego, uma alegria inesquecível. Já perto do Masp despiroquei de
vez. Ergui a grasi (meu "carro") o máximo que pude, como se na ponta
houvesse alguma bandeira. Para quem ainda guarda algum traço de vergonha
do cão de metal, foi o máximo da desencanação no meio daquela catarse
coletiva. Perto da GV, no bar do fanático tricolor (que nem deu as
caras), Gritos, risadas, abraços e a proximidade de casa - o mundo era
corintiano. Lembrando que horas antes encontrei na Augusta um velho
guerreiro dos tempos em que morei na São João, decidi terminar as noites
naquelas quebradas - Bar Azul, cujo dono respirava Corínthians.
Uma recepção morna, um clima de fim de noite - até minha cornetinha da
25 de Março resolveu falhar.

Melhor assim, era hora de começar a pensar no relógio, no começo da
semana. A verdade é que a noção de tempo geralmente está ligada a
eventos. Esperamos tanto por eles, e quando acontecem deixam a alegria e
a saudade das recordações, um vazio e a imaginação fértil para tentar
focar ou inventar outro marcador. A torcida pela escola de samba do
bairro, Uma viagem, uma prova, um reencontro - nessa se passaram 324
meses. A primeira ressaca dos 27 incrivelmente não veio, parte do
metanol deve ter evaporado entre sopros, suor e gritos. A mesma saúde
não demonstrou minha garganta, mas até o fim da semana tudo volta ao
normal. Pra fechar, emendo uma citação com o devido comentário, postada
no Facebook há algum tempo. "Meu ideal de vida é a variedade e a
intensidade das experiências, sejam elas alegres ou penosas." (Contardo
Calligaris, Folha de 29/09/11) Equivale ao "se chorei ou se sorri , o
importante é que emoções eu vivi". Vale pros que tem medo de viver e se
envolver, como cada um de nós em diferentes graus. Que venha mais um
bolo de surpresas!

domingo, 27 de novembro de 2011

Vai Corinthians!

Lembrando aqui de um jogo da Libertadores ano passado. Gol do Timão, corri pra
varanda com a vuvuzela que já nasceu em mim e desandei a gritar. Aí escuto de um
prédio próximo: ô vizinho, é nóis, olha aqui, olha aquií! Virei o pescoço para
todos os lados, simulando olhar.. E depois pensei: espero que seja uma bandeira,
uma camisa. Já pensou se o cara tá fazendo um bunda lelê ou algo parecido e eu
fingindo dar a maior atençãoa? #vaicorinthians!

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Mudanças de tempo

Disseram que o tempo ia mudar, e mudou. Quando saí para o almoço eram 14:53, agora já passa das 15:35. Parti seco, esfomeado; cheguei farto, molhado. Não fosse isso, nada mais teria mudado.
'

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Rio 40 degraus: uma história sem corrimão

Lá na casa do Catete, sonzeira que Botafogo. Ela chegou toda Mimosa, arrasando
Bangu. Um Flamengo, outro Flu. Construíram um Castelo sem Pilares, no Centro de
uma ilusão passageira. Num domingo de Ramos, discutiram tão intensamente que a
praia ficou vermelha. Do Alto da Boa Vista, janelinhas se abriam pra ver e ouvir
aquela Usina de intempéries. Foi um banho de Mangueira em pleno inverno. Perdeu
o Leme, afundou-se na Água Santa. Saía por aí feito um Zumbi, ou então um
Jacaré, se embolando em suas próprias ondas. Chorava Pitangueiras, um passado
sem Glória. Santo Cristo, tende Piedade do pobre Juca. A Maré não tá pra peixe,
mas a coisa Irajá melhorar, tenha Paciência. Acendeu uma lapa de vela pra São
Conrrado, subiu de joelhos os degraus da Candelária, implorou pra Santa Teresa -
foi uma Barra. Ai de Tijuca! Você Benfica sem ela ao Andaraí a procura de um
Encanto na Cidade Nova. Sua Garota de Ipanema, ou alguma Maria da Graça, te
espera em Copa: numa cabana, no campeonato mundial ou no alto de uma árvore,
como um passarinho a procura do Bonsucesso. Olhando bem no Fundão de uma garrafa
de vinho roubada do Padre Miguel, cantará em breve um sambinha no Recreio, mais
ou menos assim: "Olaria, Olariá, é com ela que eu quero me casá.." O velho Cosme
tinha razão: Cascadura, coração mole.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Mais divagações sobre o domingo e o resto da semana

Certa vez, no auge de alguma alegria passageira, escrevi que não era bom
confundir os personagens de domingo com os de segunda. Lí por aí que a
aposentadoria é uma condenação ao domingo perpétuo. Carolina Bensino,
uma conhecida anônima de Google, tem uma visão interessante da semana:
de domingo a quinta-feira ela espera o príncipe encantado, sexta e
sábado sai a procura do lobo mau. Chico Sá diz que quem gosta da 2ª é
porque tem um caso na firma. Tem uma música que diz que todo mundo
espera alguma coisa de um sábado à noite, mas é na noite de domingo que
o esperado se materializa nos pensamentos sem fim. DIsseram também que o
mal do domingo é anteceder todas as segundas, mas concluo que é fato que
2/7 de nossas vidas se passarão num desses 2 dias. Então boa terça, que
a quarta parte desse bolo não seja de quinta, esquecida numa sexta!

domingo, 6 de novembro de 2011

É dia de domingo

Começo de manhã, calçadas ainda carregam resquícios de um fim de noite.
Latinhas, bitucas, vidros quebrados, pedaço de um salto. O cão fareja aqueles
escombros com avidez, late para alguém que batia uma vareta no chão e sai
correndo no farol vermelho. Mas é manhã de domingo, carros andam sem pressa, sem
buzina. Como um cão sem dono o homem de terno preto e tênis All Star entorna o
último gole, coça os bigodes e tenta lembrar onde deixou o seu possante. Uma
página de jornal balança com o vento, mostrando os próximos capítulos da novela
da semana. A moça, toda de branco, segura a página com firmeza, dá uma bocejada
e chinga o motorista, que parou fora do ponto. Fim de plantão, o sono dos justos
começará antes da segunda curva. Na padaria uma boneca bombada pede uma média,
olhando desconfiada para o carro que quebra o silêncio com seu alarme. Pouca
coisa acontece, pouca coisa a apetece na estufa de salgados já quase vazia.
Horas mais tarde casais passeiam de mãos dadas no centro financeiro do país.
Crianças felizes escolhem o brinquedo que virá de brinde no lanche. Com olhar
menos vibrante, a moça de avental lava xícaras em um café, assoviando uma música
talvez ainda não composta. Os dois bonitões do balcão despertam sorrisos, caras
e bocas. Um fala sem pausa para respirar, o outro acaricia o visor do celular.
Na macarronada em família, a tia solteirona conta de suas últimas aventuras em
Amsterdã, mas é interrompida pelo primo mais velho, que se queixa da bateria do
olodum que toca só na cabeça dele. Desejando postergar a ressaca para o próximo
dia útil, coloca mais gelo e enche a boca, fazendo um sonoro gargarejo. O caçula
acha graça, ao contrário da mãe, que faz cara de nojo. Com o copo metade cheio,
ou metade vazio (os engenheiros diriam que o recipiente tem o dobro do tamanho
que deveria ter), sai da mesa ao ouvir o grito de gol ecoando pela vizinhança.
Por essas bandas o consumo de picolés deve ser alto, é um tal de "chuupa" pra lá
e pra cá. A avó larga a agulha e o fio ao olhar para o relógio, é dia de baile.
No outro canal um entediante jogo sem gols. Não é sexta-feira santa, nem um
outro feriado, mas tudo está fechado, diz a música dos Titãs. Mas a trilha
sonora do fim do primeiro dia da semana é a musiquinha daquele já não mais tão
fantástico programa de tv. Acompanhando a tal revista eletrônica, é hora de
arrumar a lancheira, fazer contas, a lista de compras do mercado, espiar os
babados do fim de semana na internet, ligar para a vizinha pra dizer que amanhã
não vai pra academia porque o carro quebrou e a previsão é de chuva. Os
piadistas do futebol diriam que em Curitiba tem até risco de Furacão na segunda.
Namorados se despedem no portão, ele canta "faz de conta que ainda é cedo". Na
noite já passada foi mais criativo: perguntou se ela queria acordar com uma
ligação ou uma cutucada, e assim acabaram passando o dia juntos. E, depois de
descansar sem estar cansado, é hora de rolar na cama e esperar o sono chegar,
descompromissado como esse texto. Começa a contagem regressiva para o próximo
final de semana. Para o pessimista, existem sete segundas-feiras na semana. Para
o otimista, é o dia mais longe da próxima segunda. O sábado ficou ainda mais
para trás, mas não pareceu sobrar como o dia que o sucede. Espremido entre os
dois dias, domingo é a mais perfeita tradução de paradoxo: dia chato, que a
gente não quer que acabe.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O nome das rosas: anônimos a favor do relógio

Saio do trabalho meia hora antes, como de praxe quando vou viajar no
horário das 20:40. No caminho para o metrô, uma simpática moça, suponho
que de meia idade, pergunta se estou indo para a estação. Com os minutos
contados, uma rápida insistência para que eu fosse à Igreja dela, que
devia se chamar Falamansa: pra cego ver, pra surdo ouvir. Prestando
atenção a passos largos, minha única certeza é que eu iria ao Paraíso,
fazer a infernal baldeação para a linha Azul, rumo a São Judas. Mas o
processo demorou algum tempo a mais que o mentalmente rabiscado, porque
a funcionária afirmava que os 2 ou 3 trens que chegavam pareciam
sardinhas enlatadas. Por sorte eu não estava com fome, e sim com pressa.
Desço em São Judas e outro simpático funcionário me conduz até a saída
indicada. Penso em olhar o relógio, mas me deixo levar pelo fluxo.
Alguns metros e ouço: "medalhinha de São Judas é um real!", "olha a
água, gelada, gelaáda"! Desvio um poste, faço coceira num orelhão, um
anãozinho dispara na diagonal. Dali pra frente eu lembrava que os
obstáculos aumentariam em medida igualmente proporcional ao número de
pessoas, mas ela apareceu, perguntou para onde eu ia e, por sorte, nosso
destino era o mesmo ônibus. Eu ensaiava uma respiração mais longa quando
ela me diz que a rua estava fechada, se mostrando também bastante
surpresa. A placa no ponto indicava a nova parada e a alteração de
itinerário, explicado pelo gente boa da lanchonete. Não foram nem 10
minutos de caminhada e a conversa animada novamente me fez esquecer da
máquina engolidora de segundos geralmente presa ao pulso. Chegamos na
parada junto com o ônibus, o trânsito parecia livre, leve e solto. Ela
desembarcou primeiro. Vi as horas no celular, ainda estava no tempo
regulamentar. Abro o facebook, a procuro, leio outras bobagens, divago
como teria sido difícil achar a nova parada sem ela
e, de repente, lembro de perguntar ao motorista se está longe do ponto
do aeroporto. Minha calma imediatamente foi esquecida diante da fala do
condutor: "Aeroporto? Já passou faz uns 3 pontos, meu jovem, você devia
ter me avizado antes"! Aí foram conversas geográficas, como qual o ponto
mais próximo pra eu pegar outro voltando. Minhas costas ficavam cada vez
mais molhadas quando o homem dizia coisas do tipo: "Chi, é muito
difícil, você vai ter que atravessar ali e entrar na outra rua lá".
Chegamos a conclusão de que seria mais fácil descer no corredor da av.
Santo Amaro, onde pegaria outro no mesmo canteiro. Só que o trânsito não
colaborava, então desci um ponto antes e segui no tal corredor em
direção à Ver. José Diniz. Difícil era saber se a esquerda ficava pra
direita ou vice-versa ao desembarcar já pela esquerda do busão e com o
pensamento no relógio. Já em terra firme e com o mínimo de lateralidade
restabelecida, pergunto para o primeiro que aparece para qual lado fica
o semáforo mais próximo. Nessa altura esqueci da minha fobia de
corredores, onde uma deslisada mínima para qualquer um dos lados parece
te por na mesma passagem por onde voam os coletivos, cuspindo barulho e
fumaça. Pouco depois o que bem me recordo foi um senhor perguntando onde
eu queria chegar, dizendo um "já volto" para a filha e, carregando uma
pesada sacola de doces, me fez companhia até a parada do novo ônibus.
Comprei uma pipoca doce, que minha mãe é fã, e ele insistiu em me
devolver o troco. No ponto outro passageiro que pegaria também o São
Judas, mas parecia não ter pressa alguma. Nessas horas puxo papo para
evitar falar com o relógio. Minhas costas ainda encharcadas de suor, não
resisti e vi que faltava pouco menos de 15 minutos para o horário máximo
de tolerância para o embarque. Indaguei se naquela rua, onde quase não
passavam sequer carros (nem sinal do bendito busão),
havia algum ponto de táxi próximo. Ele disse que sim e, com a força do
pensamento, eis que surge um carro com letreiro no teto (na verdade
nunca parei pra pensar se o tal letreiro fica em cima mesmo). E, com a
ajuda de tantos anônimos, cheguei em Curitiba. Nos últimos tempos alguns
desses anônimos viram contatos no Facebook, gerando a expectativa de um
segundo encontro, acidental ou não. Mas a verdade é que, ainda que eu
nunca mais os veja, cruzam o meu "jardim da vida" e dão mais graça e agilidade:
estão na próxima esquina, nos labirintos dos shoppings, na fila do
teatro, na rota apressada para o trabalho ou na calada da noite.
Exemplos não me faltam, mas esse foi o que fechou o mês de outubro. Já
novamente em Sampa, embora o frio de 12 graus me faça crer que ainda
estou na fria terra das araucárias.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Meu amigo Tocha

Ele não usa relógio, a calçada é sua guia
ele não usa calçados, tem os pés no chão
Pedestres passam apressados, é sol de meio-dia
ele não sabe seu nome, mas tem calo na mão
 
Quando cheira azedo, me segura pelo dedo, me causa medo
Quando enche a pança, seu corpo balança, me dá segurança
Quando a cor do sinal muda, me conta da vida, me prende pelo braço
E então o bonequinho fica verde, dá uma pigarreada e aperta o passo
 
Seu nome é Tocha, rei da Rua Rocha
 seu nome é João, dono do quarteirão
 seu nome é pivete, mas não vende chiclete
 seu nome é mendigo, mas me chama de amigo
 
Escrevo em prosa torta, como as ruas do Bixiga
Escrevo sobre um anonimo, escória da sociedade
Escrevo sem cimetria, que diferença faria
e só não vê quem não quer, por toda essa cidade

domingo, 23 de outubro de 2011

Pela tela do computador

Pela tela do computador vejo a foto do prato que um amigo vai comer. Em frente à
mesma tela fiz o meu jantar: pringles, granola e o que mais encontrei nas
gavetas abaixo dela. Pela tela do computador leio o jornal, e enquanto faço a
digestão do empadão de notícias, temperadas com críticas, pimentas do cotidiano,
previsões e batatas frias de ontem, um amigo do Recife me oferece tapioca via
msn. Lá o dia ainda terá uma hora a mais, pois não adotaram o horário de verão.
Não sei se esses 60 minutos serão de grande valia, já que garoa e faz 23 graus,
segundo o site do Weather Chanel, o que deve ser quase inverno para os
pernambucanos. O Facebook informa que outra amiga está no aeroporto, então fica
a pergunta: será que chega ou vai, de Curitiba para Madrid ou São Paulo? Na
verdade não sei de onde a conheço, mas ela sempre aparece na telinha com seus
comentários inteligentes e curtições. Percebo em seu mural que são freqüentes as
passagens por Londrina, Ribeirão Preto e Congonhas. Sendo durante a semana,
provavelmente sejam viajens curtas, feitas a trabalho. Se um dia vier a postar
que o calor é grande, já tenho um comentário na ponta dos dedos: "diz que aí
todas as saunas faliram, porque ninguém queria passar frio lá dentro"! O celular
vibra e na telinha pequena leio um sms informando o resultado do jogo que
assisti escrevendo amenidades no msn. O mundo chama lá fora, com a Vai-Vai
entoando os primeiros acordes do samba campeão. Digito no Google um trecho e o
Youtube cala as vozes que entram pela janela fechada. O Facebook me mostra mais
fotos: a filha de uma amiga ensaiando seus primeiros passos, uma placa grafada
com um erro de ortografia gritante (daqueles de fazer Camões urrar em seu
túmulo), o esquentinha de ontem, a rua apinhada de gente, a cara de transtornado
do cabeçudo quando já passava das 5 (mas o copo não saía de sua mão). Um colega
muda o status para solteiro em menos de 24 horas de um relacionamento sério. Na
parte superior da página abre um anúncio de um site de compras coletivas, que
oferece pratos pela metade do preço. As regras são bastante restritivas e, sendo
fora de mão, volto ao Google e procuro a quantidade de calorias que habitam uma
latinha de cerveja. Abre outro anúncio, dessa vez falando de uma viagem para a
Itália, berço do nhoque (o prato que leva o som de sua ingestão) e do macarrão.
Diz a lenda que este foi invenção dos chineses, mas quando penso em passear pela
Wikipedia para confirmar pisca outra janela: o amigo da tapioca agora oferece
doce de mamão. E então a tela diz quanto tempo já se passou entre uma tapioca e
um filé ao molho madeira. Me dou conta que entre um clique e outro vi o domingo
passar, tão perto e tão longe de amigos, pratos, viagens e fatos. Que venha mais
uma Restaurante Week, o Corinthians seja líder da última rodada, a Vai-vai seja
bicampeã e os vôos não atrasem, são os meus pedidos de hoje. Pode passar a régua
e trazer a conta, que amanhã é dia de tela quente.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

De boca abrida

Pego o celular no criado mudo, acerto o despertador e ele me diz que
terei quase 7 horas para descançar o corpo e a alma. Uma bela
espreguiçada, agradeço mentalmente pelo dia que foi de boas energias,
com tudo o que planejei (e o que não planejei também) dando certo.
Desligo o celular e o fixo (que hoje em dia só tem esse nome, mas pode
passear tranquilamente comigo até o trabalho), pois pretendo realmente
desfrutar dos quase 420 minutos de desconexão. Penso sobre algumas
bobagens quase sérias, aperto o relógio e me dou conta de que alguns
minutos já fazem parte do passado. Apesar de eu não ser o mais pontual
dos terráqueos, tenho uma certa obsessão pelas horas. Por vezes consigo
ter a idéia de quantos minutos se foram, mas o tempo é distorcido pelas
sensações: quando boas, me fazem esquecer dele. Isso chega a ser quase
óbvio, mas estou num estado de raciocínio lento e contínuo, que não me
permite fechar os olhos e embarcar para a próxima página do calendário.
Sim, talvez eu esteja mentindo quando fale em fechar os olhos, mas o que
importa mesmo é o signo das palavras. E signo me remete a horóscopo,
novamente mentiria se eu dissesse que pulo essa parte do jornal. Não me
pauto por ele, mas é legal ler o de ontem, por exemplo, e dar risada da
total falta de sincronicidade ou de sua mais perfeita expressão. Quem
sabe naquela memorável viagem ao Rio constasse algo do tipo "clima nada
propício para viagens, bom para reflexões caseiras ou para descançar o
corpo e alma", ou então o oposto, um "dia bom para novas e passageiras
amizades, autoconfiança e diversão". Diz a lenda que quem sai por último
da redação escreve o horóscopo, e eu não duvido e nem acredito. O que
realmente me intriga é a lua: the dark side of the moon? Pink Floyd e um
bom 12 agora cairiam bem, mas o que ouço é o mais puro silêncio da
madrugada, que a qualquer momento pode ser rasgado por uma freada, uma
sirene, um grito de socorro, um sabiá com megafone ou ecos de um amanhã
que ainda é hoje. Tem gente que consegue continuar um sonho perdido,
como se o acordar fosse apenas o "plin plin" no meio do filme. Sim, quem
sabe um bom filme invocaria aquele soninho que teima em não aparecer,
mas agora meus dedos percorrem o teclado e gostam da brincadeira. Seria
capaz de escrever um filme mudo para cegos (sem audiodescrição), uma
história só de meio (sem pé nem cabeça), ou ainda um longo texto que
seria interrompido ao meio, deixando o leitor mais irritado que eu na
manhã que se avizinha. A privação do sono perturba o meu senso de humor
e o de direção, mas antes eu tivesse vagado como um cão sem dono pela
madrugada ao invés de gastar o lençol nesse rola pra lá e pra cá. Serei
o primeiro leitor da Folha de hoje, que trará em primeira mão as
notícias de ontem? Ou na terceira chamada um portal se abrirá e
acordarei já com o barulinho da máquina de minutos? Então é isso meu
amigo, o tempo não para, mas eu preciso fingir que consegui dominá-lo.
Até a próxima parada!

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Apenas mais um dia de chuva

A chuva, além de assunto freqüente nos elevadores (será que chove hoje?)
é também tema recorrente na música (Chove Chuva / Na Rua, na Chuva, Na
Fazenda). Nos jornais, é pauta obrigatória: os temporais de verão, as
águas de março, a garoa contínua da primavera, a falta dela no inverno,
deixando o ar que respiramos quase visível. E quando os primeiros raios
riscam a tarde ensolarada e quente, é questão de segundos para brotar,
na Praça da Sé ou no Largo 13, o homem que diz: "olha o guarda-chuva, o
pequeno é 8, o grande é 10!". Discutir a diferença entre garoa e
chuvisco é como questionar a partir de quantos degraus se pode chamar de
escada. O fato é que, nos meses mais quentes do ano, os alagamentos
fazem da selva de pedras a terra da canoa, e não da garoa. Os motoristas
ficam agitados, mas o trânsito empaca. Certamente foi num dia de chuva
que surgiu a piadinha segundo a qual carro em Sampa vai pagar IPTU, pois
é bem imóvel. O taxista foi à luta, pois como diz o poeta Vinícius, é só
a chuva que cai do céu. ouve pelo rádio o menos pior dos caminhos, mas o
passageiro impaciente repete pela terceira vez que está atrasado em meia
hora. Um ônibus cruza pela pista da esquerda, livre para ele, e a água
agora se espalha pelo vestido branco da senhorinha que até então sorria.
Uma leitura labial seria impublicável antes da meia noite. Um cego tenta
cruzar a outra metade da avenida, mas o chiar da pista molhada não o
permite identificar se os motores estão a seu favor. Uma estudante sai
correndo, deixando cair sua pasta cheia de xerox rabiscados, que agora
rolavam para o bueiro mais próximo. Ela só perceberia quando chegasse em
casa, já na segunda hora de um novo dia. Pesquisaria o conteúdo do texto
perdido no Google, mas a falta de luz apenas a permitiu acender uma vela
e resar, mesmo que fosse quase atéia. A essas horas a senhorinha do
vestido branco ouvia sobre os 27 pontos de alagamento pelo radinho a
pilha, enquanto o cego procurava no escuro o shampoo, que na verdade era
condicionador. Na ausência de energia, os pingos que vinham do cano e
passavam pela peneira eram tão gelados quanto os da chuva. Pensou então
ser bem dado o nome de chuveiro. Lembrou de quando era ainda criança e
sua mãe dizia que o alvoroço de São Pedro tinha lugar quando alguém
brigava - era uma boa tática para que evitasse as brigas com seu irmão
gêmeo, com quem dividira tantos pingos e raios de sol. A senhorinha
olhava pela varanda o rio de concreto e aguardava ansiosa a chegada do
marido.
 A estudante tentava se recordar da última vez que tinha pisado em uma
Igreja, ainda com sua mãe, que agradecia por sua filha mais velha ter
passado no vestibular. Sentiu uma súbita tristesa pela sua ausência e
então correu para abrir a janela, fazendo com que a água que brotava de
seus olhos se confundisse com os pingos que vinham do céu. Depois sentiu
um orgulho retroativo pela irmã e, lembrando do cego que conhecera na
volta pra casa (atravessaram a rua juntos e por coincidência pegariam o
mesmo ônibus), tentou acender um cigarro com os olhos fechados. O
isqueiro fez uma cócega levemente ardente na ponta de seu dedo, mas
tragou o canudo com força e sentiu-se vitoriosa. Ele também pensava
nela, mas sabia que reencontrá-la seria tão fácil quanto evitar a chuva
desviando por entre os pingos. Seu papo era leve, mas nada fútil; seu
perfume era mais forte que o de terra molhada. Ela desceria um ponto
antes, mas saltou no próximo apenas para ajudá-lo a atravessar outra
avenida. Ainda assim sentiu-se culpada por não ter avisado da possa
d'água. Ficou tão envergonhada que só deu tempo de dizer um "tchal
moço", com a voz abafada pelas mãos que tapavam seu rosto. Ele agora
punha as meias encardidas de molho, ela pisava no cigarro para apagá-lo
e a senhorinha dava três pulinhos ao ouvir a maçaneta da porta. O guiou
pelo braço até a cama, o despiu e, no batuque da chuva, namoraram como
não tinham feito desde o último por de sol em Parati. Diz-se que amor
temporário é chuva de verão, amor impossível é chuva no certão, amor
para sempre é ilusão, mas amor duradouro acaba não (autor desconhecido).
O cego se questionava como seria um arco-íris, enquanto a estudante
aproximava o despertador dos olhos. A noite seria curta, pois sairia
ainda antes de casa, por conta do trânsito. Mas, ao amanhecer, a água só
restava nas sarjetas e nos jornais. A luz já havia voltado, então deu
uma rápida olhada no Google, focando os principais pontos do texto que
virara lixo. O cego dormira ali mesmo, no sofá, ouvindo os pingos se
chocando contra a janela. Acordou num sobressalto, com o rádio no último
volume - era sinal que a luz novamente regava as tomadas. A senhorinha
passava um café para o marido, que ainda dormia como veio ao mundo, e o
rádio falava: vambora vambora, tá na hora vambora. Depois veio Almir
Sater: "é preciso chuva, para florir".

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Audiodescrição

É fato que desde o dia 1º de julho as emissoras brasileiras, por força
de lei, deveriam disponibilizar ao menos 2h de programação semanal com o
recurso da audiodescrição. É um recurso fantástico de inclusão, que
consiste numa descrição clara e objetiva de tudo aquilo que se
compreende visualmente e não se depreende dos diálogos. Como exemplos,
expressões faciais e corporais que tenham algum valor para o
desenvolvimento da história, descrições das cenas e cenários, figurinos
e mudanças de tempo e espaço. Imagine que, após um diálogo caliente,
toca uma música e o cego fica ali imaginando os corpos despidos em
movimento, quando na verdade sequer se beijaram.. Poizé, a imaginação
vai longe e, sem a descrição de cenas, é fácil se dispersar (ainda mais
se for alguém inquieto como eu). O pior pode acontecer se o filme todo
puder ser compreendido tão somente pelos diálogos, mas acabar em uma
cena muda. Foi mais ou menos o que aconteceu quando assisti ao "O Homem
que Copiava", "Ônibus 174" ou à minissérie do Chico na Globo, "O Amor em
4 Atos". Aí o jeito é recorrer ao São Google, ligar para aquela pessoa
que sabe de tudo e não se importa com o relógio, pedir socorro nas redes
sociais ou imaginar um desfecho mais ou menos coerente. Mas com a
audiodescrição a imaginação pode se focar nos detalhes, propiciando uma
compreensão plena e envolvente do programa. Há quem possa imaginar que
não faz sentido descrever uma explosão de cores, naves e raios (Avatar)
a alguém que sequer viu a cor do mar, mas essa idéia pode ser bem
equivocada. É ali que o cabeção vibra e viaja, prestando a atenção em
paralelo nos diálogos e barulhos. É nessas horas que até esqueço que sou
cego e deixo todas as sensações me invadirem! Copiando trecho do site
audescrição.com.br, que eu recomendo: "A audiodescrição permite que o
usuário receba a informação contida na imagem ao mesmo tempo em que esta
aparece, possibilitando que a pessoa desfrute integralmente da obra,
seguindo a trama e captando a subjetividade da narrativa, da mesma forma
que alguém que enxerga. As descrições acontecem nos espaços entre os
diálogos e nas pausas entre as informações sonoras do filme ou
espetáculo, nunca se sobrepondo ao conteúdo sonoro relevante, de forma
que a informação audiodescrita se harmoniza com os sons do filme".
Infelizmente ainda são raros os programas e filmes em que o recurso é
disponibilizado. O Teatro Vivo traz a audiodescrição em suas peças e há
outras iniciativas louváveis, como o festival Melhores Filmes no Sine
Sesc. Foi lá que assisti ao Avatar e ao Tropa de Elite 2. Sorrisão de
orelha a orelha, descendo a Augusta lembrando de cada detalhe e as vezes
trocando idéia com outros que voltavam do mesmo lugar. Na Tv aberta, os
filmes exibidos no Tela Quente e Temperatura Máxima (Globo), o Chaves no
SBT e o Comédia MTV atualmente são os únicos. E hoje tive o privilégio
de assistir ao Kung Fu Panda, que me inspirou a escrever essa postagem.
Tudo bem que o filme é de 2008 e realmente espero não ter que aguardar
até 2014 para assistir ao Kung Fu Panda 2, mas a largada foi dada e
sinceramente fico na expectativa de que muito mais do que a lei prevê
seja disponibilizado. Mando um "salve" ao pessoal da Iguale Comunicação,
Lavoro Produções e Instituto Vivo, e fecho com uma frase que certamente
já li em outra época e lugar, mas é sempre boa de ser lembrada: "o ontem
é história, o amanhã mistério; O hoje uma dádiva, daí receber o nome de
presente." (Mestre Oogway, Kung Fu Panda).

sábado, 24 de setembro de 2011

Primeiro ato: voltando à rotina

Uma peça no site de compras coletivas por menos da metade do preço, bons atores e uma história razoável. Tudo bem que com a carteira de
estudante (já vencida, mas ainda assim bem-vinda), pagaria quase a mesma bagatela, mas num princípio de garoa e friozinho provavelmente meu
lado preguiçoso bateria mais forte se já não tivesse pago. Redobro o cupom, pego alguns trocados, armo meu cajado e sigo em direção ao
teatro. O frentista do posto me adianta a única travecia, que na verdade são 3.
Chegando no shopping, a entrada de lado, com direito a chafariz e flores, sempre me deixa confuso. Mas nada que uma andada em círculo e uma
cara de mais perdido que filho de meretriz em dia dos pais não resolva. Um simpático cidadão me conduz até o elevador - espaços abertos, sem
muitas referências como num shopping, não são lá muito amigáveis para os cumpanheiros das vista prejudicada. O caixote subiu lotado de
pessoas que se dirigiam para o mesmo lugar que eu. Um senhor me leva até a bilheteria, uma mocinha sorridente me dá seu lugar na fila (mesmo
eu tendo insistido que a peça só começaria em meia hora). No balcão troco o cupom pelo ingresso,
e a pergunta é sempre inevitável: é uma entrada só? Não, se a bilheteria fechar até às 21:30 vem comigo!
Elaassegura que aquele lugar que
escolheu seria o melhor. Fiquei tentado a perguntar se a vista era boa, mas a voz quase automática da trocadora de papéis me fez
desistir. Talvez ela risse falando um "kkk", ou "senhor, estou te assegurando que o senhor estará estando em um ótimo local, mais alguma
dúvida?". E então a situação era a seguinte: hainda havia mais de 30 múltiplos de 60 segundos e eu ficaria ali, fingindo olhar para o chão
ou para o teto, simulando procurar algo nos bolsos. Talvez aparecesse uma senhora querendo me dar o acento em algum banco próximo e, mesmo
diante de minha recusa, ela já não estaria mais lá pra ouvir que passei o dia sentado, que eu estava bem assim, que eu também gostava de
teatro e que garoava lá fora. O celular continuava me dizendo as horas em intervalos de tempo cada vez menores. Cada vez que eu o tirava do
bolso e o apertava, imaginava aquele moço fanho que dias atrás perguntou se eu precisava de ajuda pra ligar pra alguém enquanto eu digitada
um tratado via sms.
Me passou pela ante-sala do cérebro tomar um café, e se eu tivesse feito o movimento circular com a bengala armada certamente alguém
perguntaria para onde eu pretendia me dirigir. Mas preferi me ocupar novamente com o celular, agora ouvindo quanto restava de bateria, o
nome das redes sem fio (diz a lenda que quem inventou isso foram os mineiros, daí o nome de "uai-reless").
Ainda me restavam 15 minutos e o zumzumzum de pessoas não me dava a pista de em que direção eu correria lentamente quando a primeira
campainha soasse. A moça do lado falava com vozinha (daquelas que se faz quando se fala com um namorado). O casal sex(agenário) comentava da
última viagem a Aparecida do Norte, enquanto dois adolescentes contavam dos carros de seus progenitores. Nenhum dos assuntos me agradava,
mas eu fazia um esforço para me compenetrar naquele arredor. A primeira campainha demorou a soar, mas foi eu puxar o carro que mãe e filha
se prontificaram a subir comigo a longa escada (segundo elas) com não mais de duas dezenas de elevações. "É bom que a gente fica cansada e
depois senta, não é meu filho"? Seria deselegante e sem propósito discordar. O fato é que, com o rabo acomodado, quando a segunda campainha
soou minha cabeça quis pender para baixo, lembrando da noite mal dormida. Mas o tempo voou e eu não dormi um segundo. E vejamos que tenho
uma facilidade incrível em dar algumas pescadas - confesso que vi lambaris em pleno monólogo da Fernanda Montenegro ano passado. E o
movimento parabólico com aquilo que existe acima do pescoço não significa que o assunto não me chama a atenção o suficiente. É apenas a
manifestação de um corpo exausto, preenchido por uma alma inquieta.
Terminada a apresentação irreal de algo bem real (as relações sentimentais e seus desvios), dei uma leve encostada com meu cotovelo no braço
do cumpanheiro a poltrona ao lado, só pra me sertificar de que realmente ele estava aplaudindo em pé.
Ainda que fosse notável que todos tínhamos gostado, sempre tive medo de ser o único do rebanho a me tornar bípede na hora errada. As mãos
mal esfriaram dos aplausos e o vaivém já era notável. Ameacei seguir o fluxo, mas uma simpática moça de meia idade, que é de Foz do Iguaçu,
mas mora em Santa Catarina e estava a passeio na terra da garoa, foi me contando coisas engraçadas até a saída do shopping. Descemos juntos
meia quadra e aí meu carro de ponteira gasta seguiria para a direita, ela para a esquerda. Eu digeria a encenação toda com a garoa batendo
na cara, uma sensação de leveza tomava conta de mim. É bem verdade que o "orvalho denso" se colocava já na zona cinzenta entre garoa e chuva quando
ouvi o cleck do portão, mas só por hoje eu não ligaria em chegar com um pedaço de Tietê na meia. E cá estou digitando no velho computador
que quis ficar duas semanas sem papo comigo e, na presença do técnico, desembestou a falar sem cerimônia. Pois que venha chuva, que abra um
clarão barulhento rasgando a madrugada. No palco da minha cabeça, volto a ver um sol batendo na janela do quarto. Seja bem-vindo!

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Superassamba

E vem aí mais um carnaval! Ainda faltam mais de 5 meses, mas as batucadas na
Vai-Vai, atual campeã, já fazem parte do início de domingo aqui da Bela Vista
(Bixiga para os mais íntimos). Ontem fui com alguns amigos no ensaio, final do
concurso para escolha do samba-enredo. E, como diz o refrão, "Bixiga é alegria"!
A bateria nota 10 é de arrepiar e é bom de mais sentir a massa toda unida
naquela mesma energia. A música não demora para impregnar a mente e impulsionar
os pés e braços - quando percebo o robozinho já tomou conta de mim. E aí, na
minha falta de inspiração nessas últimas duas semanas agitadas (meu notebook
ainda não sarou da virose que o deixou sem fala) resolvi compartilhar um texto
de um colunista da Folha de S. Paulo que me chama bastante a atenção,
provavelmente porque temos algumas vivências bem afins. Aconteceu algo parecido
da última vez que fui ao ensaio da Vai-Vai. Fiquei do lado de fora, onde minha
locomoção é bem razoável. Vale a pena resgatar de minha primeira postagem que a
orientação em espaços barulhentos fica bem complicada, mas nem sempre nossas
vontades são racionais. O fato é que, passada a fase das perguntas, geralmente
vem os comentários que o Jairo Marques vai dizer muito bem, e depois os
convites, como o "você tem que ir lá em casa pra fulano te conhecer".
 Tem dias que tô super a fim de responder, as vezes até com outra pergunta,
fazer novas amizades e rir um bocado. É muito bom poder mudar um pouco aquela
idéia de que carrego uma cruz maior que a bengala. Mas naquele dia eu só queria
ouvir a música e molhar o bico de vagar. Passada então a fase dos convites, os
dois amigos da zona leste pareciam dispostos a recomeçar as perguntas, depois de
uma rodada de cerveja por eles oferecida. Só que aí a vontade de urinar fez com
que eu entrasse na quadra com um deles e, de quebra, me ajudou a comprar a
camiseta da escola, muito bem usada na noite seguinte no Anhambi. Bom, deixa o
Jairo Marques contar a história, que hoje eu tô chovendo no molhado. Publicado
na Folha de 01/03/11, com o título "com as rodas no samba".
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A cada vez que "atravesso o deserto do Saara" é uma latinha de cerveja que me presenteiam
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DUVIDO QUE ALGUÉM OUÇA mais palavras motivacionais durante o Carnaval do que eu. É gente de todos os lados do salão se esbarrando em mim e dizendo: "Mas que exemplo
de superação! Nessa situação, e tão animado aqui no baile, né?! Olha como ele se diverte, parabéns!".
Nunca entendi por que tentar sacolejar com minhas quatro rodas na avenida ou nas quebradas seja demonstração de "tô podendo". Para mim, curtir a vida é quase obrigação
de quem respira.
É claro que é mais comum as pessoas com deficiência serem retratadas em alas de hospitais de clínicas do que nas de baianas da Sapucaí. Mas daí a achar que o fato
de soltar a franga ao som de sambas de enredos e marchinhas seja algo extraordinário, ainda leva um queijo e uma rapadura.
O problema de festejarem a "superação" do povo cego, surdo ou avariado geral do esqueleto durante o Carnaval é que a gente deixa de se divertir para contar a história
de vida para aqueles mais sensibilizados.
"Sim, foi acidente. Caí do caminhão de mudança." "Não, o cão-guia não samba nem late, nem nada." "Não, não escuto mesmo. Danço de acordo com as vibrações da música."
Mas dá mesmo vontade de chorar pelado no asfalto quente é quando surgem os bêbados ou foliões mais animados -sem jamais a gente ter visto a cara deles- querendo
levar mais alegria para o nosso "alalaô".
No meu caso, eles saem empurrando a cadeira de forma desembestada pelo salão atropelando todo mundo -pânico total de um pierrô cair no meu colo. Sem exceções, fazem
"bibi" para abrir passagem e me deixar "triunfar" de alegria sendo conduzido por um pinguço.
Juro que não sou ranzinza. Acontece que nada deixa um cadeirante mais incomodado do que um estranho tomar as rédeas de seu veículo e ainda querer brincar de cavalinho
de pau. Parafraseando o Chico, "deixe o menino sambar em paz".
Mas há um lado bom da admiração carnavalesca que alguns sentem pelo povo deficiente: é a pinga de graça. A cada vez que "atravesso o deserto do Saara" é uma latinha
de cerveja que me presenteiam, afinal, "não é toda hora que se vê gente assim por aqui".
A dureza, porém, vem depois de ficar com todos os goles que talvez fossem para o santo. Onde descarregar a cervejada que entrou no bucho? Cadê o banheiro acessível
dos clubes, dos camarotes, das barras ondinas, das ladeiras?
Sou totalmente favorável à campanha que o Rio está fazendo para que os foliões não façam "xixo" nas ruas durante os desfiles de blocos. Mas que não se esqueçam
dos banheiros químicos acessíveis para que todo o mundo possa urinar feliz, sem disputar postes e esquininhas com os lulus e sujões.
E boa sorte para os meus coleguinhas mal-acabados que vão encarar a muvuca e as multidões para seguir os trios elétricos de Salvador e outras capitais festeiras.
Imagine a dor no pescoço de tanto ficar olhando para cima para enxergar alguma coisa?
Quem já foi garante que os seguranças dos cordões de isolamento dão aquela "hand" e dá para aproveitar muito bem, como tem de ser para todos. Contudo, é preciso
relaxar porque a chance de fazer amizade forçada é imensa. Sei não, que nossa senhora da vassourinha do frevo e dos abadás do axé os proteja.
jairo.marques@grupofolha.com.br
@assimcomovc
assimcomovoce.folha.blog.uol.com.br

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A rádio da cabeça

Ok, imagens podem dizer mais do que 1000 palavras, mas o que seriam delas sem a
companhia de uma bela trilha sonora? Foi assim desde a época do cinema mudo. O
que seria do amanhecer sem o canto dos sabiás? E a padaria sem o cheirinho do
pão fresco? Risada de criança, cheirinho de carro novo, aquele gostinho que
lembra infância, a textura de um flufi. São diversas as coisas que independem da
visão para se materializarem, mas hoje quero falar das canções que nos dão algum
embalo: para baixo, para os lados ou para cima. Uma música pode nos trazer
várias sensações: a guitarra que acelera o coração, a gaitinha que acalma a
alma, a batida que faz o corpo querer entrar num ritmo frenético, a percussão
que marca mais que uma respiração por entre as palavras, a letra que parece
querer contar uma história que já foi sua, ou quem sabe um dia será. Com que
freqüência a gente capta todas essas freqüências? Será mesmo que carecem de
cores e contornos? Podem até remeter a uma foto, parada no tempo ou dançando na
mente, mas não fechada em si mesma. A música nos traz uma experiência que é
multi sensorial. Na alegria, na tristeza, na dor e na risada - de olhos
arregalados ou fechados, seus acordes, arranjos, tons e palavras mexem com a
essência de qualquer vivente (até mesmo dos ditos irracionais). E assim é que
domingo retrasado o que bombava na rádio da minha cabeça (aquela que não tem
locutor e nem botão de desliga) era "Mais uma Dose", do Cazuza. Nesse, perdido
em meus devaneios, foi a vez de "Tive Razão", com Seu Jorge, ouvido há poucas
horas atrás em uma Fundição Progresso lotada, na Lapa carioca. E hoje, ao
amanhecer já no conforto de casa, sem ter com o que me preocupar, foi a vez de
"A Idade do Céu", com Zélia Duncan e Simone. À noite, se a ansiedade bater na
porta, me acabo na esteira ouvindo "Running Free", do Iron. E assim, de trilha
em trilha, vou caminhando e cantando (na verdade assoviando, porque não solto a
voz nem debaixo da água fria). Cantar só quando ninguém vai me ouvir, no meio da
multidão, engrossando o coro. E aí, no intervalo, se der coragem solto a
vuvuzela que tava presa na garganta: toca Chegaaáaá (virada cultural). A rádio
da cabeça, que já foi até tema de música do Morais Moreira, pode até não ter
razão, mas sempre traz alguma emoção: que se quer, já se quis ou hhá de querer.
 Pra terminar: que nesse show da vida a gente se entregue, sem dó maior e com
todos os sentidos que ainda nos restarem, às melhores vibrações!

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Mais uma dose

Nessa noite meus goles eram diminutos e pausados, quase tímidos como eu. Antes
mesmo de a bexiga dar sinal de vida decidi por pra fora o que em menos de uma
hora faria volume. Procurei um canto escuro, daqueles em que a bengala faz eco
ao bater. Ninguém passou, ninguém viu. Viro à direita, desço os degraus da
perpendicular e, novamente à direita, estou na mesma quadra grande, mas quase no
seu fim. Me sinto tão livre e cheio de mim nessas já tão conhecidas paralelas
que sempre se encontram. Alguém gozava do meu time, dizendo que se encontrasse
um e-mail sem título era só encaminhar ao Corinthians. Quis entrar na
brincadeira, e logo você, que eu ainda não sabia o nome nem tamanho, mas me
chamou a atenção, começou a rir dos absurdos quase verdadeiros que eu falava.
Nos aproximamos cada vez mais. Agora eu já conhecia seus cabelos, seu rosto
ficaria para um pouco depois. Não tenho costume de tocar as pessoas, ao menos
que haja um porquê. Quando dei por mim você fazia abrir minha boca, olhava nos
meus olhos e dizia, as vezes com firmeza, as vezes com a lingua querendo
embaralhar: não importa que você é assim! Isso me brochava e me encorajava, a
querer mostrar que as coisas não mudam, em que pese meu olhar seja diferente.
Mas me apertava cada vez mais contra você, sua boca parecia querer me engolir.
Eu ria, suspirava, alisava seus cabelos, o nariz passeava pelo cheirinho bom do
seu pescoço. Depois você quis que não fosse só o nariz, e não só o pescoço. Ó,
que cena passava pela minha cabeça: o ceguinho tarado abusando da moça levemente
embriagada, ou vice-versa (inclusive invertendo-se os complementos). Até quando
vou dar crédito a vozes imaginárias, que brotam de uma consciência que não sei
se é minha? O limite para não ouvi-la seria mais uma dose (é claro que eu quero
sim, a noite nunca tem fim, por que que a gente é assim)? Acho que não. Hoje
penso que a bebida dá o impulso, mas a idéia já tava lá. E aí você diz que
precisa ir no banheiro e eu penso: nos encontramos pela vontade de urinar, nos
desencontraremos também por ela. Você quis me falar do degrau, mas seu braço já
tinha me avisado antes. Desfilamos pelas mesas de sinuca, você seguiu e eu
fiquei ali parado. Perguntei para aqueles que te cumprimentaram se você tava com
eles. Sendo positiva a resposta, respirei aliviado, pigarreei, fiz cara de "não
te conheço mesmo", ensaiei um "valeu boa noite", parei o jogo por passar
raspando na mesa. Num susto desci o degrau e a calçada, repleta de gente,
convidativa pra tomar o restinho do birigético e gastar a ponteira da bengala.
Eis que, quando a última gota ainda descia goela abaixo, você ressurge, me
botando contra a parede. Foi tudo como da primeira vez, só que agora mais rápido
e intenso. Perguntei onde morava, mas você só quis rir e dizer que era longe.
Consultei os bolsos, pensando na remota possibilidade de te acompanhar num
táxi.Vi que não daria, então pensei em te levar pra minha. A verdade é que
simpatizei com você, tanto faz se me jogasse na cama como fez na parede,
quisesse conversar de amenidades ou acordasse no fim da noite histericamente,
querendo saber quem eu era, se estava longe de casa e como veio parar ali. Fui
pelo caminho que me parecia mais óbvio: questionei então se você voltaria com
eles (os que a cumprimentaram perto das mesas de sinuca). Novamente suspirei
quando balançou a cabeça para frente e para trás, querendo dizer que sim. Você
ensaiava dizer mais uma vez aquilo, que não importava que eu não, mas agora era
eu quem calava a sua boca com a minha. Fomos interrompidos por suas amigas: a
essa altura eu já sabia os nomes, embora ainda não tivesse gravado qual
correspondia a cada uma delas. Estavam querendo partir. Sei como é depender de
alguém para voltar e esse alguém esquecer das horas e do sono alheio, então,
evitando pensar muito, me despedi. Não sem antes perguntar seu contato no
Facebook. Acabei anotando na cabeça também o de uma de suas amigas. Chegando em
casa, ligaria o computador ainda antes de passar no banheiro ou na cozinha, mas
a verdade é que entrei sem precisar passar por esses 2 cômodos. Tomei a saideira
com os sabiás e cheguei tão leve que o que fiz foi escovar os dentes andando
pela casa, como de costume. Dormi pensando em você, acordei querendo te
esquecer. Não que eu tenha motivo para isso, mas é o tempo quem irá se
encarregar de. Achei 3 homônimas suas: duas moram no Rio e uma em outro
continente. Semana que vem trocarei as calçadas cinzas pelas cariocas, mas você
mora lá mesmo? Por lá encontrarei outras Marias, outras Cristinas, ouvindo Maria
Rita (não deixe o samba morrer) ou Teresa Cristina (noite alta é meu dia). Quem
sabe um dia você me encontra voltando apressado do almoço, num sol de meio dia .
Na Paulista os faróis já vão se abrir, mas eu me fecho pensando em alguém que
está longe, que não é mais você. Embora eu seja assim, e isso pra você não tenha
importado, a imagem que ficou foi boa, e eu gostaria de vê-la de novo, ainda que
no reflexo imaginário de um espelho. Você passaria minhas mãos pelo vidro e me
tiraria o fôlego.
 Mudo a estação, as fragrâncias. Mudam-se os nomes das ruas e pessoas, os
degraus, os sotaques, os copos. E algo parece que lentamente vai mudando dentro
de mim. Quero só continuar na leveza do canto dos sabiás, porque começo a
entender que realmente uma noite nunca tem fim e a gente é mesmo assim.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Lendo com asõrelhas e mãos

Domingo bom é aquele em que acordo quando o sono acaba. Olho no celular as
mensagens ouchamadas não atendidas, porque deixei o aparelho no silencioso. Dou
uma longa espreguiçada, com direito a um bocejo nada discreto. Tomo um banho
ouvindo rádio e, ainda enrolado na toalha, começo a ler o jornal enquanto dou
uma passada pelos e-mails, tweets e leio a previsão do tempo. E, num piscar de
orelhas, o tempo voou mais rápido que a voz do meu etezinho ledor. Começo a
pensar se minha saída seria para um almoço tardio ou janta fora de hora.
Respondo alguns e-mails que já faziam aniversário, mais uma olhada nas frases
engraçadas e vídeos indicados no facebook. Só quando a cabeça cansa de ouvir a
voz mecânica é que boto uma roupa e resolvo subir ladeira. E que voz é essa? É o
leitor de telas, programa que transforma em voz sintetizada o que está escrito
na tela e também o que digito. É assim que consigo escrever esse texto, ler o
jornal, consultar o sistema e fazer as portarias no trabalho, responder e-mails
e perder a noção do tempo no msn ou no youtube. No caso do jornal, por exemplo,
entro no site e, quando acho algum link de notícia que me interessa (navegando
com a tecla tab), dou um enter e ele despara a ler.
Além do computador, existe também o braille, aquele monte de bolinhas que muita
gente pensa ser difícil de entender. O sistema de leitura para cegos,
desenvolvido pelo francês Luis Braille a partir de um código para comunicação
nos campos de batalha, foi essencial na minha alfabetização e na vida escolar.
Trata-se de uma sélula com 3 pontos de altura por 2 de largura - da combinação
desses 6, são possíveis 63 arranjos diferentes. Vale uma pesquisada no Google
por "fonte braille". Até hoje etiqueto meus dvds em braille, consigo identificar
congelados, remédios e outros produtos, caso o fabricante tenha se tocado de que
é um diferencial (não só do ponto de vista inclusivo, como mercadológico). Assim
é que os pontinhos não devem ser esquecidos mesmo para os cegos que nascerão
sabendo o que é USB.
Voltando ao computador, são 2 os softwares que utilizo: o Dosvox e o Jaws. Há
uma demonstração de uma voz sintetizada em bit.ly/loquendo (selecionar o Felipe,
a Fernanda ou a Gabriela, que são as portuguesas). Já quanto ao teclado,
frequentemente me perguntam se o meu tem braille nas teclas. Acho que isso até
deve existir, mas não é algo necessário - não só porque o programa pode soletrar
tudo o que digito, mas também porque existem referenciais bastante práticos.
Repare as marquinhas em relevo nas letras F e J de seu teclado, bem como no 5 do
teclado numérico. Achando isso, se você já tiver uma noção do teclado, fica
fácil encontrar o d (à esquerda do f), ou o 2 (abaixo do 5). Isso é um padrão da
ABNT, e é especialmente útil, por exemplo, em telefones e maquininhas de cartão
de débito e crédito. Certa vez, impressionada com a velocidade com que digitei
minha senha na tal maquininha,
 tentei explicar à balconista esse lance da bolinha no 5, que era facilmente
encontrado pela marcação, e ela me perguntou se minhas senhas eram então sempre
seqüencias de números 5, risos.
a voz sintetizada tem uma aplicação não só restrita ao computador. Graças a ela
há mais de 5 anos não preciso de alguém para ler meus sms no celular. Com um
fone de ouvido plugado no caixa eletrônico, posso fazer um saque e ele me diz as
notas que a máquina liberou. Quanto a saber diferenciá-las, talvez isso mereça
um capítulo a parte, na semana que vem ou na outra. E falando em capítulos,
passei algumas madrugadas digitalizando partes de livros para a faculdade.
Deve-se passar
 página por página no scanner (com sorte, a depender do tamanho do livro, da pra
abrir e passar duas). Depois o programa faz um "ocr" (reconhecimento da imagem
gerada para texto) e aí é só botar o leitor para tagarelar. Acontece que esse é
um trabalho chato e demorado, que poderia ser poupado se as editoras tivessem a
descência de fornecer os livros já em formato digital. Como disse uma vez meu
amigo Diniz, scannear é imprimir do avesso! Mas, para quem há alguns anos ficava
entediado na praia em dia de chuva, enquanto todo mundo lia o jornal ou jogava
baralho, as tecnologias assistivas hoje são música, informação, literatura e
arte para meus ouvidos!

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Chegando em casa

Descendo do busão, vindo da academia ou das cercanias da Augusta, a
passagem pela praça 14 bis é caminho obrigatório. Se venho da zona sul,
contorno quase todo o redondo da praça e, quando a bengala roça a
terceira escada, é hora de botar o braço pra dentro da grade até tocar o
poste e saber que ali é a faixa. No meio do caminho as vezes aparece
algum braço amigo, mas que não consegue entender para onde eu pretendia
ir. De repente, estou perdido entre um posto de gazolina e
outro, dos 3 que existem do lado de lá da avenida. Mas não é raro que a
pessoa, que ia em direção oposta, me ajude nas duas travecias e ainda
peça desculpas por não poder ir além - como posso então cair no senso
comum de que ninguém tá aí pra nada? Algumas vezes, ainda, alguém grita
"pode vir", deixo o ar me respirar e crio coragem: a primeira travecia é
larga e o menor destino entre dois pontos é sempre uma reta - aí bate
aquele medo dessa reta virar uma diagonal. Se isso acontecer, uma
explosão de ssensações toma de assalto a mente e o coração: avanço,
paro, grito, rezo ou dou rizada? Foi só um susto, já passou. É que eu
esperaria o farol abrir para os carros e fechar novamente, mas o "pode
vir" era também um sinal. Só que, como eu não tinha idéia de quanto
tempo faltava para ele abrir, apertei o passo e o que era largo pareceu
mais largo, o que era reto pareceu torto e o que era rápido pareceu
lento. A bengala bate no ritmo da bateria da Vai-Vai, cuja quadra fica
há poucos metros. E quando me dou conta o pé já chuta o meio-fio,
novamente se encaixa no chão e o da frente sobe. Aquela idéia segundo a
qual o tempo que dura um minuto depende de que lado da porta do banheiro
você está aqui também faz sentido. Do posto de gazolina até o prédio são
algumas entradas de garagem. Por intuição, alguma noção de distância e
pelo cutucar da bengala no canteiro, sei que estou em casa. O porteiro
já me conhece: piso na rampinha do prédio e já ouço o estalar do portão.
Pode ser 5 pras 6 de uma manhã de domingo ou emcima da hora do trabalho
- a passos firmes ou trôpegos, mas sempre apressados. Tiro uma fina da
coluna (a percepção que tenho do claro e do escuro é uma fiel
escudeira), esfrego rápido e intensamente os pés no tapete da entrada, o
braço se estica no lugar certo e aperto o botão do elevador. Se ele
demora, aperto mais duas, três, até quatro vezes, como se ele entendesse
que o espero "pra ontem". E ele vem já com algumas pessoas,
provavelmente vindas das garagems, que ficam nos andares abaixo. Minha
mão caminha em direção ao 12º botão da fileira da esquerda, que já acho
sem o braille ao lado do quadradinho, mas outra mão, que não era a minha
esquerda, me diz que alguém já teve a mesma idéia. Esse alguém diz um
"bom dia", seguido de meu nome ou do meu time, e eu retribuo, mas no
lugar do nome boto um monossilábico grande;: bom dia ehrefk (isso tem
que parecer com qualquer nome, já que não vou me recordar mesmo). Sou
péssimo para nomes e datas de aniversário - dessas brinco que só não
esqueço a do meu irmão, gêmeo. Diz que num elevador ninguém se olha, e
pelo tempo de subida o diálogo passa pelo "com esse tempo não tem como
não ficar gripado", o genérico "acho que mais tarde chove", ou até o
"anda sumido?", respondido com um "poizé, acho que nossos horários não
andam batendo". A porta se abre e o fulano diz: até logo então, o seu
andar é o próximo. Tiro a chave do bolso, espero a porta abrir já quase
colado a ela. Agora é só esfregar novamente o tênis no tapete da minha
porta, abrí-la e tropeçar na mochila que eu mesmo deixei no caminho. Lar
doce lar, até a próxima bandeirada.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Dormindo de olhos abertos

Uma buzinada (de um carro, risos) e ela me diz, em tom firme e pausado: "chegou
o táxi, preciso ir". Seus braços compridos e torneados me envolvem com força,
minha mão passeia por seus cabelos lisos e longos.
 Trocamos um beijo rápido, porém intenso, e logo ouço o barulho seco da porta do
carro batendo. Ao fundo um rádio toca "I Wish You Be Here, do Pink Floyd. Em
segundos estou sozinho, na saída da estação, sentindo o cheiro da leve garoa.
Vejo a hora no celular e lembro que não há tempo para maiores devaneios - já
perdi o trem das 11, agora só restavam mais alguns e a estação estava prestes a
fechar. Me guio pelos espaços abertos, aperto o passo e tiro uma fina de uma
lixeira. Um piso emborrachado me diz que há alguma escada rolante próxima. Ela
me rejeita, demoro pra entender que eu queria descer e o sentido era inverso
(tivesse um pouco mais avoado a queda seria certeira). O odor do perfume
amadeirado daquele rosto agora se misturada ao de borracha queimada. O sistema
de som agora informa que o último trem partirá com destino à Estação da Luz em 2
minutos. Faço cara de desespero, ando em círculos achatados e nada de outra
escada. A antena do rádio de um segurança roça em meu braço, onde depois ele
segura e me conduz até o elevador, dizendo "delta victor na saída norte, qap na
escuta?".. Outro homem alto (suponho pela dificuldade que tive em alcançar seu
braço) me aguarda na porta e, ainda dentro dos 2 minutos, quando me dou conta já
estou sentado, aliviado. Escuto o "Próxima Estação, Prefeito Saladino", enquanto
minha cabeça começa a querer pender para baixo. O trem freia lentamente,
arranca, mas não mais presto atenção no nome da próxima parada - apenas sinto o
movimento, enquanto a cabeça roça um dos balaústres da composição (ô nominho
estranho..). De repente ouço uma voz, que parecia vir do fim de um corredor:
"Registro, 30 minutos pro café!". Faço a mesma cara de perdido daquele que
corria em círculos pela estação, esfrego os olhos, dou uma bela espreguiçada e
pego o celular do bolso. 03:17 de uma madrugada de sexta para sábado. Quando a
mesma voz do corredor põe sua mão pesada em meu ombro e me pergunta se vou
descer me situo que estava dormindo em um ônibus, e não num trem, e que em menos
de 3 horas estaria em Curitiba. Ali acabava um sonho, mistura de "dejavu" com
devaneio. Agora era descer pra tomar o tal café, comer um porcaritus ou
simplesmente alongar as pernas.
Espero ter passado uma noção de como são meus sonhos: sempre sem cores, mas por
vezes cheios de detalhes. Cheiros, barulhos, objetos, escadas - não os vejo, mas
os sinto como se estivesse acordado. E não são assim mesmo os sonhos, dando
aquela impressão de que aconteceram fora do mundo das idéias, até que nos
situemos nos limites de uma cama, ou de um banco de ônibus? Sonho como vivo,
embora eu bem mais viva do que sonhe, risos. É claro que quem já enxergou têm
memórias/vivências diferentes das minhas, então poderá sonhar com a feição de
alguém, um arco-íris ou um por do sol no Arpoador. Eu talvez imagine uma voz
macia me contando detalhes da paisagem, sinta a briza do mar e o queimar da
pele. Precisa de mais alguma coisa?

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Cachoeira do Escorrega

http://www.youtube.com/watch?v=nSGoxRpCqME">
Assista ao vídeo
Essa semana foi meio atípica por aqui, com férias de 3 dias e uma saudável
bagunça aqui em casa. Então, depois de um final de semana de reencontro com
grandes amigos (alguns deles fizeram parte da viagem que descrevo abaixo)
 e uma bela escorregada na rotina, resolvi compartilhar esse texto, vivido e
escrito em novembro de 2009.
Saudades da água correndo e a gente quase parando, por ser mais gelada que a
cerveja tomada no restaurante do Cezar! Descrever o escorrega é algo que tô
tentando desde o fim da tarde. Poderia dizer que foi fechar os olhos e cair na
água gelada, ou então que a iluminação da tela me desconsentra, mas agora estou
com o monitor desligado e nenhum pensamento minimamente lógico e cordenado
invade a mente. 5ª tentativa: Depois da descoberta da história da enchente de
66, fiquei ansioso pelo domingo, hipoteticamente o dia rabiscado no roteiro para
a visita à Cachoeira do Escorrega. Seria uma pedra gigante e lisa, de onde
brotaria um aguaceiro capaz de me levar para baixo na velocidade do som, ou de
um pensamento engasgado? Sendo algo natural, e portanto não planejado, seria a
declividade muito acentuada, com intermitências, vales, crateras, desvios ou
outros acidentes de percurso? Dada a força da água, ter os olhos apenas como
buraco capaz de diferir a presença ou ausência de luz faria alguma diferença
significativa em uma eventual tentativa de mudança de rota? Tentei comparar com
qualquer outra situação de fortes emoções, como tirolesa em Bento Gonçalves, o
mar de gente no show da Maria Rita na virada cultural, os carros enfurecendo os
motores antes de eu chegar em algum meio-fio. Mas tudo aquilo era construção
humana, de certa forma planejada. Envolto nessa nuvem de pensamentos,
comparações e questionamentos, meu coração acelerava querendo dizer sim (ou, já
que a moda é copiar, "Yes, we can"). Eu tinha assumido o risco, mas se algo
acontecesse de nada adiantaria sem ter exteriorizado. A Dani e o Nei analisavam,
me contavam da posição das pessoas que desciam, tentavam me descrever o
percurso, o que me deixava com uma vontade ainda maior de partilhar da mesma
emoção.
Alguns meses atrás alguém comentou comigo que existia um restaurante maravilhoso
perto de meu trabalho, mas que eu não poderia ir lá porque havia uma grande
escadaria na entrada. Naquele domingo o Nei foi me conduzindo pela trilha
íngreme, com escadas de raízes, pedras com um bocado de limo e terra seca - as
vezes pelo braço, as vezes num trenzinho composto de apenas 2 vagões. A
composição pensou em rumar para trás quando eu percebi que a subida era maior do
que eu pensava, mas o maquinista pulsante do peito mandou prosseguir. Em fim
começamos a descer, e eu com um puta medo de que logo escorregasse em pé mesmo.
Na hora e lugar certos o Nei falou para eu sentar, com as mãos para trás (seria
o assalto das águas). Me rendi, dei um impulso e logo meu traseiro roçava a
pedra cada vez mais molhada. Peguei velocidade e logo empaquei em um lugar um
pouco mais reto, ralando muito de leve parte do calcanhar e do cotovelo. E se eu
empacasse no meio da pedra, que direção seguir? Seria algo improvável, pois o
curso natural das coisas é te levar por onde há mais água. Novo impulso e,
quando fui me dar conta, já estava no poço de água gelada, embora parecesse
quente pela adrenalina. Foi tudo muito rápido, mas deu tempo para a foto e
alguns olhares curiosos, espantados, admiradores ou até compreensivos de outros
turistas como nós. Se eu não podia imaginar a cara dos outros, não fazia a
mínima idéia da minha. Não lembro se soltei um "tesão pra caralho", ou outra
frase igualmente elaborada e espontânea, quando um deles me guiou até a parte
onde havia pedras. Quando me dei conta eu já estava respondendo um "vambora" à
pergunta do Nei: topa ir de novo? Subimos a trilha, dessa vez sem escorregar.
Sentei na pedra, deixei os braços no colo, porque percebi que seriam tão úteis
quanto meus olhos arregalados. Num deslise praticamente uniforme as águas me
levaram novamente de encontro ao poço. Senti o vento, o frio na barriga e,
embora a velocidade que peguei fosse maior, a queda foi "leve, livre e solta".
As águas geladas, os braços gentis que me conduziram até as pedras. Dessa vez
não deu nem tempo de dizer nada, só sorri desencanado. E assim é a vida, feita
de pequenos riscos que se juntam pra formar um colorido indecifrável. O que
seria de nós sem nossos medos, vontades e realizações? Valeu Nei, Dani e Sérgio!
**
Abaixo trecho de e-mail enviado pelo Claudinei, com um belo poema sobre o medo:
"Você enfrentou as trilhas e os 30 metros do escorrega da mesma forma que enfrenta a selva de pedra que é Sampa, com um sorriso no rosto e uma piada na ponta da
língua.
Ao ler seu relato, me lembrei (vagamente) de uma poesia que falava sobre o tema, como minha memória não tem capacidade de reter por muito tempo uma poesia, me vali
do Google para achá-la. Segue abaixo:
O medo
Antonio Candido
        "Porque há para todos nós um problema sério...
         Este problema é o do medo."
                   (Antonio Candido, Plataforma de Uma Geração)

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.
Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.
Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.
Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.
Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.
Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?
Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas
do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.
Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.
E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.
O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.
Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo."

terça-feira, 19 de julho de 2011

Criando coragem

Quem me vê contando piada, as vezes sendo eu mesmo o personagem, tando de copo
cheio ou vazio,
 questionando tudo e correndo ladeira acima com meu cajado não imagina que em
certas situações toma conta de meus 1,65 uma gigante vergonha. Talvez não de
mim, mas da situação. Acontece, por exemplo, no mercado (daí eu ser adepto
incondicional do delivery, como já relatei antes). Farmácias, mercados e
restaurantes são facilmente encontráveis pelo cheiro, barulho de carrinhos,
pratos, maquininhas comedoras de dinheiro (débito, crédito ou outra espécie de
roubo autorizado). Eis que entro no recinto e faço aquela expressão de perdido,
atraindo alguém com uma cara ainda mais de desencontro. Isso pode demorar
segundos ou pequenos múltiplos deles, que parecem uma eternidade. Daí ser paixão
à primeira vista quando a pessoa me olha com firmeza, bate em minha mão com o
cotovelo, diz um simpático boa tarde e já vai direto ao ponto. Escuto vozes,
reais e imaginárias (ao mesmo tempo): será que ele precisa de ajuda? Vou ver com
ele. Será que ele tá sozinho? Será que ele ouve? (se for numa cidade
cosmopolita, acrescente-se o "será que ele fala português?"). Essa pessoa pode
tar acompanhada, aí as perguntas se repetem para a outra: será que ele precisa
de ajuda? Você vai lá perguntar? Sim, e o ouvido abrido vai captando,
processando. As vezes crio coragem e dou um paço à frente, tento abrir um
sorriso, dando a entender que sou um vivente qualquer.
Num passe de mágica, que as vezes requer mais alguns olhares vagos ou palavras
que depois não me recordo, a moça do caixa, a cozinheira, o da balança ou algum
garçom põe a mão no meu ombro e, bandeja em punho, desfila salão a dentro me
descrevendo o buffet. Se for prato pronto é ainda mais fácil. A primeira
aproximação é complicada, mas a segunda já flui quase tão natural que eu almoço
por lá a semana toda, ainda que o preço não seja dos melhores, que fique um
"TIQUINHO" fora de mão (essa lembrando dos queridos mineiros). Na semana
seguinte caio na real que tá na hora de conhecer outros lugares, e quem sabe lá
também ficar conhecido. E isso é fantástico porque, passado o choque inicial,
cria-se uma certa cumplicidade ou aproximação. A moça do restaurante já sabe que
eu não gosto de abobrinha, o caixa do mercado me lembra que não peguei leite. O
motorista do ônibus já sabe que vou descer na ruazinha depois da concessionária,
ainda que eu fique mais de dois meses sem ir a Curitiba. Talvez seja um pouco
chato na hora de comprar preservativos, risos, mas nunca ninguém me
perguntou para quê eu precisava - a menos que eu desse liberdade para
tal. É que às vezes essa proximidade torna-se estranha, principalmente
aos olhos de quem vê de fora. Mas devo admitir que eu mesmo já passei
por alguma dúvida, embora aí talvez eu me feche, tentando corresponder
ao profissionalismo de quem está ali tão somente para auxiliar. Essa
dúvida entre alguém que executa seu trabalho com extrema presteza ou um
eventual algo a mais talvez mereça outro capítulo, embora eu não tenha
grandes histórias para contar sobre. Mas vale lembrar que apenas meu
olho é quase de ferro (a bengala).
nem sempre a primeira impressão é a que fica, nem sempre a última é definitiva.
E nem sempre começo a escrever sobre algo e termino falando dele. O importante é
que, depois de alguns minutos babando no teclado, você já deve tar começando a
sacar como as coisas funcionam por aqui. Então fique à vontade pra comentar,
perguntar.. Foi da curiosidade de amigos ou de tantos braços anônimos que nasceu
esse espaço. Valeu por existirem!

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Apenas um olhar

Existem pessoas que acreditamos na superficialidade cortês, mas ela as vezes se
aprofunda um pouco, de forma unilateral, dando margem a achar que de um algodão
pode mesmo nascer um pé de feijão, ou outro broto qualquer. Falas em um olhar,
enquanto eu me perco absolutamente entre o singular e o plural. Não dá pra sacar
se essa pessoa é só mais uma ilusão, se bem ou mal te faz. Fico pensando nela te
fuzilando num olhar 43, talvez eu nunca saiba como é isso, ou inconscientemente
já tenha feito? Sinto uma espécie de ciúme, mas isso me remete a posse. Acho que
nunca quis te possuir. Te imagino leve, não só pelos braços finos. Um sorriso
questionador, que não acredita em solução e também parece não ver problemas.
Já passa da segunda hora do dia.. Do segundo dia da semana.. Do segundo vaivém
de algum ponteiro.. E em segundos as segundas intenções ficam para lá, sem
segunda chance. "game over", "good look".

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Mercado, uma caixinha de surpresas

Ainda que o sujeito fosse todo dia ao mercado, é impossível decorar a
disposição dos corredores e produtos. No meu caso, preciso de um
funcionário para me orientar nas compras. A maioria deles tem boa
vontade e diz se sentir feliz em poder ajudar, mas as vezes eles podem
demorar a aparecer ou entender coisas que o "ouvido abrido" custa a
acreditar. Imagine que, depois de fazer hora extra em um deles (o nome
não devo falar, embora tenha acabado de dar a dica), digo ao funcionário
que quero ir à seção de comida pronta. Ele me encaminha a outro e diz:
"o rapaz aí quer um prato de comida!"..
Fora compras de emergência, quando a geladeira mais parece loteamento
novo (só tem grade e água..), recorro ao delivery. É uma maravilha
porque posso fazer o carrinho pela internet, e o leitor de telas não te
faz perguntas, fala produtos que você sequer sabia que existiam
(geralmente comestíveis..), compara preços e vai te dando o valor total,
sendo o assalto previsível. Aí é só esperar, no período combinado, a
campainha tocar, o funcionário contar os volumes das caixas e começar a
brincadeira. O que é de geladeira vem em sacolas separadas e, por
estarem gelados, fica fácil saber que lá devem ser entulhados. Alguns
congelados prontos já têm indicações em braille, do tipo "lasanha de
carne, 350g". Quanto aos minutos de aquecimento, o Google, o site do
fabricante, o cheiro e o bom senso geralmente são bons aliados. Já
quanto aos frios, tudo se resolve numa apertada, cheirada, olhadela no
tamanho da bandejinha.. Mas nem sempre funciona.. Já confundi queijo com
peito de peru, ficando em dúvida se não era lombo ou mortadela fatiada -
dúvida que só resolvi relendo pela quinta vez o carrinho de compras e
verificando que esqueci da mortadela, então não era queijo porque era o
de baixo e o peito de peru eu tinha aberto naquele dia em que cheguei em
casa roendo o pé da mesa e sequer tive o trabalho de tentar reconhecer o
que era.
Algo interessante acontece com os enlatados. Às vezes, com algum olho
emprestado, coloco etiquetas em braille para identificar. Mas geralmente
se tem algo melhor para conversar ou fazer que etiquetar, então a coisa
funciona na base da tentativa inversa: se quero comer milho, mentalizo
uma lata de ervilha. Nem sempre funciona, mas dá uma certa emoção,
talvez comparada à de abrir um kinder ovo. E falando em chocolates, se
for bombons já conheço o formato de muitos deles. Então não vá achando
que eu vou ser o tonto e catar aquele último avaí que sobrou na caixa!
Já se a comida tiver congelada e a pressa for grande, meu almoço poderá
ser um peito de frango com carne moída (aí arremato aquele vidro de
pepino achando ser mini-milho, como o avaí e já saio escovando os dentes
andando pela casa, tropeçando nas caixas vazias do mercado que ainda não
desci para o lixo). Antes de partir remexo as gavetas em busca de uma
maçâ desidratada, e por sorte vem uma ruffles. Se eu tivesse apertado um
pouco mais seria farofa de batata, aí era só misturar a maionese, jogar
o tempero de arroz que eu achava ser sopinha em pó.. Quem manda não
cheirar depois de abrir? Tá resolvido que a janta não vai ser em casa..E
ainda tem uma caixa a ser aberta, acho que fica pra amanhã...

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Coisas que o "ouvido abrido" não quer ouvir

10 coisas que um cego, deficiente visual, PORTADOR de necessidades "especiais",
"das vista prejudicada" ou o escambal a4 gostaria de ser surdo e não ouvir:
1O barulho de água na pista ao abrir a janela do quarto (é garantia de passar o
resto do dia com a meia ensopada).
2) - Moço, seu ônibus acabou de passar, esqueci de avisar, só tem você no ponto
e o meu já vem vindo!
3) - Aí ceguinho, cola na minha, na humildade, que tamo indo pro mesmo lado! Se
tivé uma caixinha pra adiantá pra nóis..
4) Oi rapaizinho, seu "cardaço" tá desamarrado!
5) - E você sujou seu "cardaço" na merda que acabou de pisar!
6) Valha-me Deus, minino. Tua mãe deixa você andar assim?
7) - Avenida Ipiranga?? Chi.. Você tá do outro lado, melhor perguntar pra alguém
que eu não sei não.. Não tem ninguém pra ir com você lá? Tá com pressa?
8) - Nossa rapaz, o sinal tá quebrado.. Você precisa mesmo atravessar?
9) - Deus fecha uma janela mas abre uma porta né.. Porque cê não vai lá no
"Brais", na Renascer? Acho que eles dão um jeito até em vc!
10) Correndo ladeira acima pra chegar quase no horário no trampo: - indo passear
né ceguinho.. Olha por onde anda! Mó gata a loiraça que te desviou do poste ali
eem.. (quando na real só pelo tamanho do braço e pela voz dá pra sacar que é "da
melhor idade" e tem corpo de atleta, tal qual o Ronaldo) - ainda que seja bem
verdade que eu adore uma "gordelícia", risos).

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Viagem ao Centro do Rio

No último sábado, 02/07,  fez 3 anos que moro nessa babilônia chamada São Paulo.
Passada a empolgação inicial, em que eu tomava um porre comemorativo a cada dia
2, comecei a bebemorar a data anualmente. Ano passado teve via sacra dos bares
da República, minha "morada inicial", ao Baixo Augusta.
Esse ano pensei em algo diferente, e ele veio em uma madrugada de junho.
Passagem promocional, Congonhas Santos Dumont. A tarifa só tava disponível para
compra até as 6 da manhã, dificilmente encontraria alguém que curtiria o aviso
em horário tão inoportuno.
Alguns meses antes fui ao Rio com amigos aqui de Sp. Alimentei meu banco de
dados fazendo todas as perguntas sobre ruas possíveis. Percebi que não era nada
difícil bengalear pelas quadras da princesinha do mar. Ainda assim, faltava
conhecer a Lapa. Mas "eu comigo mesmo"?
Horas antes de partir boto aviso no Facebook e no Twitter, avisando de minha
chegada. Tenho alguns conhecidos da cegolãndia na cidade, mas se mal consigo
manter contato com alguns amigos daqui, imagine o quanto sou relapso com os de
outras bandas.
Entro num site com a programação da Lapa e o destaque era Teresa Cristina, há
poucas quadras do hotel em que me hospedaria.
Mas eu não sabia se ainda tinha ingresso, ou se éra só couvert. Não precisei me
preocupar com isso, porque ninguém atendia o telefone e o vôo atrasou.
Ademais, eu queria mesmo é ficar na rua, como faço na Augusta - aí dá pra sentir
o clima e não preciso ter vergonha de ser feliz. Não tem ingresso e o garçom não
vai fazer aquela pergunta clássica: tá sozinho??
Tudo bem, ainda não era meia noite e, já sem o peso da mochila nas costas,
decidi partir em busca de uma gelada ali por perto.
Era praticamente uma noite de verão - que alegria usar camiseta em julho. O
mesmo casal que me ajuda a atravessar a primeira esquina me leva até a Gomes
Freire, onde começava a muvuca. Compro uma latinha e fico ali na calçada, de
"ouvidos bem abridos"!
Pedi uma Brahma, porque achei que seria "forrçar" de maixno sotaque mandar ver numa "xkol"!
Não tardou para alguém esbarrar em mim (Rodrigo?), pedir desculpas e o papo
fluiu mais rápido que minha sede.
- Pô merrmão, tu tá tomando Brahma, isso é coisa de paulichta!
- Aí, é merrmo. Devia ter pedido uma Itaipava, aí também não tinha erro..
Valeu Paulete, Xan, Rodrigão e todos os outros cujos nomes minha memória não foi
suficientemente precisa para resgatar, mas estão registradas como um vídeo feito
 de sons, risadas, improvisações e cevadas, numa imagem pra lá de perfeita. Com
a ajuda do Facebook ou do acaso, espero revê-los ben breve!
Não é preciso andar de bondinho ou pisar nos arcos pra entender o que é a Lapa:
uma Augusta com samba, um clima de última sexta-feira do ano.
Propositalmente perco o horário do café. Tomo um banho demorado, ajeito alguns
cacarecos na mochila e parto em direção ao Lapamaki, já com o pedido em mente:
corcovado (salmão com cebolinha). Esse Google realmente é praticamente um olho.
Por ali mesmo pego o 464.
e
Durante o trajeto, novamente de "ouvidos bem abridos", presto atenção na
conversa de um casal, que segue rumo ao Metrô Cantagalo. Dirigindo o "olhar" pra
eles, pergunto se tá longe da Barata Ribeiro.
- Você vai descer onde?
- Acho que perto de vcs, próximo à Cantagalo.
- Beleza merrmão, vamos descer lá também, te aviso..
(que coincidência ou que surpresa, risos)
Nem meia hora depois desembarco em Copacabana. E aí é que percebi que aumentar e
diminuir o número da rua no Google Maps, pra descobrir as transversais,
realmente ajuda, mas nada como um par de olhos - e no Rio eles são ainda mais
atentos.
Na recepção uma simpática moça, do Rio (Grande do Sul), mas com sotaque neutro.
Era a primeira vez em que eu me hospedava em um hostel. Decidi então entrar de
cabeça: escolhi o quarto Maracanã, com 7 beliches. Será que seria fácil achar a
cama? E o banheiro? E à noite, se eu chegasse muito "fora de mim", o quarto
pareceria ter 14 beliches?
Prema, a gaúcha que eu quase chamava de Prenda, foi uma ótima guia. Me descolou
uma cama em baixo, mostrou o locker, o banheiro.
Quando eu liquidava com o último naco de salmão dos dentes me aparece o André,
um portuga aventureiro que também tava sozinho. Foi com ele que fui andando até
Ipanema, onde tomamos "um bucado" de cerveja.
De volta ao hostel ele pergunta ao rapaz da recepção sobre bailes funk - mas não
o indicado na recepção, e sim um "de vrdad". Eu já me contentei com a festa open
bar, que seria no Pub do próprio hostel.
O que eu não imaginava é que, horas mais tarde, entraria lá (no Pub, e não na
Rocinha) na faixa.
Como um X Tudo no pé sujo ao lado, sigo em direção à Atlantica e, no meio do
caminho, um boteco tocando Chico. Paro pra ouvir e uma moça já pergunta se eu
preciso de alguma coisa. Falo que apenas parei pra ouvir a música e já me
convidam a puxar uma cadeira. Talvez pelo nada simpático preço dos imóveis em
Copacabana, residem muitos idosos naquela área - por terem uma vida estabilizada
ou serem imóveis adquiridos a muito tempo, suponho. E eles me parecem tão de bem
com a vida, ouvindo Chico, fumando um cigarro, tomando whisky ou guaraná. Será
que quando eu crescer vou pra lá?
Novamente de volta ao Hostel escovo os dentes e beberico uma latinha de
energético, o quarto quase vazio. Um rapaz de maceió, que mora em Osasco, puxa
papo e descubro que ele aguarda chamada no mesmo concurso em que fui nomeado.
Enquanto isso o batidão rolava solto lá embaixo e o domingo já se avizinhava.
Costumo ser bastante extrovertido, mas nem por isso tenho controle sobre uma
certa timidez que toma conta de mim ao entrar sozinho em alguns lugares como
restaurantes e bares fechados. A rua é um espaço de todos e, se alguém demonstra
alguma preocupação sobrenatural por um "doido das vista prejudicada" estar ali
sem cão e sem nenhum outro vivente, facilmente contorno tal situação falando que
sei onde estou, seguido de algum outro clichê ou piada improvisada. Já num
ambiente tipo boate a locomoção fica totalmente prejudicada, porque os "ouvidos
abridos" só captam a batida. Pessoas se confundem com paredes, as conversas são
sempre em tom de quem te pergunta se vai atravessar a rua lá do outro lado da
avenida (aos berros). E num ambiente tão "hostil" parece ainda mais fora da
realidade terrena que algum cego esteja desacompanhado. Daí minha preferência
pela sarjeta e seus botecos.
Nem por isso deixo de apreciar um som capaz de fazer vibrar o último
fio da meia e me divertir com as conversas empolgadas dos que prometem te
levar pra 1001 lugares, contam casos, vantagens e, conforme avança o horário,
desilusões e pensamentos revolucionários.
Saio pra respirar e, pensando se  toco um foda-se pra minha timidez e vou à
procura da batida quase perfeita
ou arrisco passar a noite zanzando por aí em busca de boa prosa etílica, o
hostes da festa me cumprimenta e, depois de algumas palavras, me diz que eu
seria "vip" (quando talvez tudo o que eu esperava ouvir era um "vê com os teus
camaradas aí e cola aqui"). Aí foi difícil resistir - mais pela gentileza no
convite que pelo
tutu economizado - até por que as vezes o $ só te abre portas se quem tem a
chave se sente seguro para abrí-las.
E assim foi minha segunda noite carioca: bebericando lentamente e, quando a
música era conhecida, botando pra quebrar no tímido estilo robozinho, até
aparecer alguém e ditar as instruções: balança o ombro, assim com a cabeça..
Mais saídas pra respirar e lá fora conheço outros grupos. Contatos no facebook,
histórias, risadas, perguntas.
Não foi difícil achar a cama, sem antes dar aquela demorada escovada de dentes
num banheiro coletivo vazio. Deitei sorrindo, talvez por isso tenha acordado com
a boca levemente seca e faminta, já que minha preguiça e minha timidez
em pedir ajuda para fazer um pão me
fizeram perder o café e partir em busca de águas já conhecidas de outros
carnavais: Galeto do Miguel, na Miguel Lemos.
Durante o trajeto pedi informação pra um rapaz que me ajudou a atravessar a rua.
Ele disse não saber, era paulista e não conhecia muita coisa -  mas dessa vez o Google Maps tinha
razão.
Faço o pedido ao garçom e a moça já pede pra carne vir "à francesa" (já
cortadinha). Na hora de acertar a conta, algo quase engraçado:
- Moço, você tem que ir à esquerda.
- Mas a Djalma Ulrich não é pra cá?
- Você não tá no Othon?
- Não, tô no Hostel!
Falando em Ulrich, de início eu só falava "Rua Djalma...", até descobrir a
pronuncia. É porque no dia anterior eu falei que queria ir na Lavrádio, e aí me
perguntaram se não era a  Lavradiu (é não, Paulete? risos)
Fora o hotel na Lapa, que saí sem saber se era "Rio's Nice" ou "nisse" merrmo.
Barriga cheia, volto para o hostel e fico um tempão conversando com a Prema, a
simpática gaúcha da recepção. Chegava a hora de ela ir embora, a minha também
não demoraria. No Pub agora vazio assisti ao 1º jogo da seleção, foi de dar
sono.
Volto à recepção, escuto inglês, espanhol e carioquês. Logo chega o André, o
purtuga, e vamos ao Mc.
- "queres que met katchup"?
Acho que ele sequer me perguntou isso, mas fiquei com essa frase na cabeça.
Realmente 9000 quilômetros fazem a diferença nesse nosso idioma
transfronteiriço. Melhor ainda foi o "estou cheio de fome".
Gente boa também vc, André!
Sentirei saudades de todos, inclusive dos que não me recordo os nomes (os rostos
então, nem pensar, risos).
Desembarco em Congonhas e o ônibus Perdises não demorou a passar. Desço na
Paulista e, batendo o bastão freneticamente, conheço cada poste, árvore ou
orelhão da ladeira que me leva até em casa. No meio do caminho o sãopaulino dono
de um dos bares da GV me pede pra contar pros corinthianos da mesa aquelas
piadinhas do último  chocolate que o timão deu nos pó de arroz.
Segunda-feira gelada, diz até que garoa. Que os novos forasteiros te possam curtir
numa boa, porque eu já sou quase de casa.
Escrevo no presente, depois no passado, e já penso que num futuro próximo quero
desbravar ainda mais o mosaico daquele calçadão, ou as travessas da rua que corta a
Paulista, entre Frei Caneca e Haddock Lobo.
Sou verde e rosa, sou saracura do Bixiga. Aqui toca Tom Zé, toca Teresa
Cristina. E esse fim de semana que já dura 3 anos tá "mó da ora de maneiro"!